Objetivos e intenções do Onda Negra.

O Onda Negra surge como um desejo de exteriorização de algumas reflexões que estão diretamente ligadas à questão racial. Almejamos com este espaço a problematização e discussão sobre temas como o racismo, o preconceito racial e a discriminação. Possivelmente, veremos também discussões sobre processos que apontam para uma predominância da desigualdade social e racial no nosso país.

Em alguns momentos, apresentaremos sugestões, análises e reflexões de filmes que abordam diretamente ou indiretamente a temática racial, ou, que dialoguem com a mesma. Salientamos que dentro desta proposta não deixaremos de abordar, por exemplo: a questão de gênero, os processos do mundo do trabalho e a questão racial, a questão da violência racial e, principalmente, alguns processos que envolvam reparação e ganhos para a população negra, como no caso das políticas de Ações Afirmativas.

Por último, explicamos que a origem do nome Onda Negra foi pensado a partir do livro da Celia de Azevedo, "Onda negra, medo branco". Nesse livro, a autora estabelece um intenso debate em torno das "questões senhoriais travadas por abolicionistas e imigrantistas ao longo do século dezenove. Decerto esse debate ainda se arrastaria pelo tempo não fosse a intervenção dos próprios escravos com suas ações autônomas e violentas, aguçando os medos da 'onda negra', imagem vívida forjada no calor da luta por elites racistas."

Sendo assim, julguei pertinente fazer uma alusão a esta "onda negra" que se tratava do medo das elites com os retrospectos das lutas anti-escravistas (ou por libertação dos negros escravizados) como por exemplo, a Revolução Haitiana; para tratar dos problemas contemporâneos que envolvem a condição do negro em nossa sociedade. Enquanto as lutas ganham força por ganhos de direitos, por igualdade de condições no mercado de trabalho em relação aos brancos, por políticas de reparação e de inclusão com as Ações Afirmativas, percebe-se que todo esse movimento ainda desperta em alguns grupos da nossa sociedade um incômodo, uma desconfiança e a meu ver um medo.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Suburbia e a Violência Racial: aspectos de um mundo real ou inocentemente ficcional?

Após o lançamento da série Suburbia e também depois de alguns dias que os seus episódios foram a público, quais as reflexões que podemos fazer a partir do que estão apresentando todas as quintas feiras? Quais mensagens os idealizadores querem passar com tais representações? Em alguns casos, representações reais da realidade brasileira que é vivida em boa parte pela população negra deste país, com representações ficcionais e melodramáticas que também são apresentadas na série. Ao escolher uma das representações que exerce uma grande influência em mim, decidi discorrer algumas reflexões sobre a primeira representação que é visualizada na série Suburbia. As representações da realidade vivida por muitos negros neste país.

Vamos lá! Gostaria primeiramente de relembrar algumas cenas que foram lançadas no primeiro episódio da série, que a meu ver foram apresentadas com altas cargas de veracidade, senso crítico e muita força. Tanto que em alguns momentos me peguei sem ar pelas sequências de violências que a personagem central teve que passar. Ou melhor, não só uma menina Negra, a Conceição, mas a grande maioria da população negra vem passando ao longo da história. A série começa com a representação de uma família negra de Minas Gerais que trabalha em minas de carvão. Torna-se dispensável uma explicação mais detalhada sobre as condições de trabalho neste tipo de atividade para chegarmos à conclusão que estamos diante de uma forma de trabalho precário, degradante e que remonta contemporaneamente a um tipo de escravização de alguns trabalhadores e crianças neste país.

No primeiro episódio, sua mãe após ver sua filha escapar de um acidente nas minas de carvão, decidi enviar a filha para qualquer lugar que não fosse aquele ali. Para que pudesse ter um destino diferente (quem sabe até melhor) do dela e do seu irmão que morrera no mesmo acidente. Assim, a pequena Conceição segue para o seu tão esperado encontro com o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Mas como assim, uma menina sem saber ler e escrever, sem uma referência para procurar logo que chegasse e sem dinheiro algum poderia sobreviver àquela cidade. Ah! Sem falar do grande detalhe: ela é uma menina Negra. Quais as chances dela ter um destino melhor nesta cidade? Logo que desembarca no Rio de Janeiro ela é confundida com “meninos de rua”, “trombadinhas”, “delinquentes” e outros adjetivos mais que possam ser atribuídos àquelas crianças que assaltam o casal de turistas em busca de dinheiro para tentar escapar da miséria, fome e da falta de condições que se encontravam.

Outro detalhe se faz importante, a maioria das crianças que corriam após o furto eram crianças Negras e que para a infelicidade da Conceição, corriam em sua direção e no mesmo sentido que ela. Os policiais, nessa representação da realidade brasileira, especificamente, a carioca, partem na busca dos “dólares”. Opa! Melhor dizendo, na busca dos “pequenos ladrões”. Mas o inesperado acontece: na discussão sobre quem fica com quanto dos dólares o “bando” acaba fugindo e sobra para a pobre Conceição. Mas ainda havia esperança, a “Gringa” chega a informar que ela não fazia parte do mesmo grupo de delinquentes e os policiais no auge da sua autoridade, no exercício do seu “macro poder”, dizem que a turista não sabia de nada e que a menina Negra fazia parte do grupo.

Que injustiça, que abuso de autoridade... Mas mais que isso, nas entrelinhas desta cena, o que se identifica como um traço da realidade cotidiana com o tratamento dos policiais? Corrupção? Falta de preparo para lidar com as crianças? Mas que crianças? Em algum momento aquelas crianças foram vistas como crianças? Houve alguma preocupação em procurar os pais da Conceição? Espera um pouco, onde que foi parar o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente? Acho que tenho uma explicação: em nenhum momento a menina Negra foi vista como uma criança portadora de direitos. Será que conseguimos imaginar uma cena onde uma menina branca corre em busca do seu sonho, que é ver o Pão de Açúcar e acaba sendo confundida com uma ladra, tendo seus direitos negados, sendo revistada por policiais que em nenhum momento se questionam onde estão os pais desta menininha, cabendo a ela muitos anos reclusão numa instituição de “reabilitação social”.

Na minha opinião, em nenhum momento as crianças Negras foram vistas como crianças e como portadoras de direitos. Mas que tipo de direito podem ter crianças Negras numa situação de marginalização, pobres e num país racista, que se diz não racista, o país da mestiçagem e da democracia racial. Será que vimos alguma democracia ali? Digo para vocês que o que vimos neste primeiro episódio foi uma materialização da Violência Racial. Violência não só no sentido da agressão física, mas como reprodução de uma discriminação, de um racismo que está inculcado nas consciências de muitos de nossos cidadãos brasileiros, que ao julgar que o negro correndo na rua é ladrão e etc., só legitima que os processos de racialização subjetiva continuam intensos tornando urgente um processo de desalienação estrutural da sociedade para com a questão da discriminação racial e o papel dos Negros nesta sociedade.

Continuando e finalizando os relatos das cenas deste primeiro episódio, surgem as duas ultimas cenas que para mim apontam o âmago da violência racial que o negro esta sujeito nesta sociedade. Na cena em que a Ceição é atropelada por uma mulher branca, no auge da sua independência: dirigindo seu carro, sendo mãe separada com seus dois filhos, sem nenhum apoio do ex-marido e terminando sua “tese de doutorado”, ou seja, uma intelectual e ciente, provavelmente, dos direitos das mulheres numa sociedade machista e heterossexista. Ufa! Chegava naquele momento a tão esperada sorte para a pobre menina Negra carregadas de sonhos na cidade do Pão de Açúcar. A sua “salvadora”, a mulher branca e doutoranda, presta-lhe socorro e a leva para a sua casa após ouvir sua história. Até que enfim Conceição teria uma “ajuda de verdade” e um lar, como as próprias palavras da personagem expressa: primeira vez que eu entro numa casa de verdade. Tem até televisão.

Só que falta um “pequeno” detalhe: após saber da história da Conceição, sua “salvadora” percebe que precisava de uma empregada doméstica. Mas espera um pouco! Conceição não é uma criança? É permitido o trabalho infantil? Mais uma vez me surpreendo pela falta de vontade em estabelecer um contato com os pais de Conceição. Parece que ao chegar à cidade “maravilhosa” apaga-se da mente das pessoas que cruzam seu caminho uma possível referencia familiar desta criança Negra. Por qual motivo acontece isso? Vocês fazem alguma ideia? Fazendo ideia ou não, o fato é que Conceição trabalhará na casa da sua “protetora” por muitos anos.
  
Após tantos anos de dedicação à família e de trabalho sem remuneração na casa da sua “protetora” ou patroa, o que esperávamos de retribuição para Conceição, uma menina analfabeta que entra na casa pronunciando as palavras de forma errada? Um futuro de transformações e uma preocupação da sua patroa com seu estudo? Visto que a mesma é uma intelectual, que estava finalizando uma tese de doutorado e que possivelmente cultiva um gosto pela leitura. Mas o que vimos na série não foi bem isso. A Ceição continuou falando errado até a maior idade e pelo visto continuava trabalhando sem nenhum tipo de direito ou salário. Mas o que podemos reclamar!? Ela tinha um teto, roupas limpas e lavadas, por ela mesma provavelmente, e o principal, não passava fome. O que mais queremos para uma menina Negra que estava largada na rua sem se quer uma perspectiva de futuro? Que tipo de mensagem os autores da série querem passar? Seria uma mensagem crítica ou mais uma reafirmação da condição do negro com os estereótipos utilizados na série? Mesmo sabendo que a Rede Globo não é tão adepta e respeitosa com a Diferença e Diversidade, na amplitude dos conceitos, só nos resta analisar e refletir no que tais diretores e emissora pretendem passar com tal programa. De acordo com as palavras de Paulo Lins:

Outra questão que queríamos mostrar é a superação do negro, depois de todos os problemas enfrentados.  Sobre a série Suburbia, Paulo Lins. 

Achamos importante ter um elenco composto, em sua maioria, por atores negros, para retratar fielmente a realidade do país. Sobre a série SuburbiaPaulo Lins.

Por fim, a última cena deste primeiro episódio se dá com uma tentativa de estupro cometida pelo companheiro da sua “protetora”, um homem branco que ao ver que aquela menininha, após tantos anos de trabalhos prestados àquela família, tinha se tornado uma mulher negra linda e que, consequentemente, também foi vista como um corpo cheio de curvas que apontava para uma sensualidade que nem ela mesma talvez percebesse. Mas isso não dava o direito ao companheiro da sua “protetora” de vê-la como uma propriedade e com isso, ter o poder para abusá-la como muitos dos seus antepassados colonizadores europeus fizeram com muitas das mulheres negras na historia deste país e da escravidão do povo negro africano e afrodescendentes.

Posto os relatos das cenas que mais me chamou à atenção nesta série, expresso que fui tomado por um nó na garganta de vê a quantidade de injustiças e principalmente violências que o povo negro é obrigado a passar até hoje. Depois de assistir ao primeiro episódio não pude me furtar de analisar e refletir sobre o que tinha acabado de ver. Então, procurei algumas entrevistas dos idealizadores da série e ao mesmo tempo esperançoso em identificar nas suas colocações algo sobre uma possível critica ao racismo que é praticado neste país e evidentemente, sobre a questão racial que ainda é tão latente.

Como coloquei anteriormente, observei na realização do primeiro episódio da série Suburbia a predominância em várias cenas da Violência Racial. Após uma intensa análise de entrevistas dos idealizadores da série pude perceber que os mesmos não enfatizaram nas suas falas a questão racial e o peso das violências que a personagem central, uma menina e depois uma mulher Negra sofre ao chegar ao Rio de Janeiro. Eles argumentaram sobre uma “violência moral”, não discordo do Luiz e nem do Paulo Lins. Mas sou obrigado a pensar no sentido que eles atribuem à ideia de moral. Uma violação moral aos direitos do cidadão brasileiro? A ideia de unicidade do humano na sua categoria mais universal possível? Mas como abordei antes, em que contexto a Ceição foi tratada como uma menina e mulher de direitos? Será que a população Negra foi vista e é vista como uma população com direitos? Será que podemos atribuir-lhes a condição de “Homem” na sociedade atual? Ou evidenciamos o que Fanon bem explica em seu livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, a condição de “Negro”. Sendo visto com o “não-branco”. Está claro que neste episódio em nenhum momento o Negro ou a menina Negra foi vista como uma criança ou mulher de direitos. Esse homem que sofre esta violência moral ainda está pautado numa lógica eurocêntrica, branca e heterossexista.

Por isso, chamo à atenção para a dimensão latente da violência racial em todas as suas esferas. Indo desde a condição real de vida até a subjetiva. Por exemplo: Da representação de uma família negra nas minas de carvão. A sua “protetora” só tinha como forma de ajuda dar-lhe um trabalho de empregada doméstica? Em nenhum momento se perguntou pelos pais da menina negra que está sendo acusada de roubo. Foram prendendo e mandando para uma reabilitação social. Quantas meninas brancas foram vistas na instituição que a Conceição estava encarcerada? Nos dias de hoje, qual a população jovem que mais morre no Brasil? A juventude Negra. Podemos falar em violência moral ou racial? Sabemos que já caiu por terra o mito de democracia racial e que o Brasil é um país racista.

Contudo, fecho a minha reflexão, sabendo que temos muito mais “pano para manga” com esta série Suburbia, apontando para as representações que foram colocadas de cada personagem negro nesta série. Torna-se importante vermos um filme do Spike Lee que se chama “Bamboozled”, “A Hora do Show”, que vai retratar o tratamento da mídia para com os Negros.
Pegando emprestada uma ótima explicação do filme, apresentada na Gazeta Mercantil, por Orlando Margarido, vejamos do que o filme trata:

Começa com uma reunião numa emissora de TV americana. O chefe (Michael Rapaport) esculhamba todos pela baixa audiência. Quer algo novo de seus roteiristas. Quem lhe dá o segredo do sucesso é o único negro da equipe, Pierre Delacroix (Damon Wayans).
A idéia brota das ruas: o artista amador que dança sapateado diariamente à porta da empresa. Manray (Savion Glover) é um prodígio levado por um amigo (Tommy Davidson). Pierre quer transformá-los nas velhas duplas cômicas da TV ao vivo. Mas há problemas. O roteirista acredita que ao recriar uma fórmula caída em desgraça por seu absurdo [ou conteúdo] racista estará mexendo com a acomodação da platéia, enfim, jogando com velhos preconceitos para acirrar discussões.
A questão é como escolheu fazer isso. Sua dupla de cômicos é negra, mas não o bastante. Apresentam-se com uma tinta preta na cara. Com um figurino que remete a personagens miseráveis e ignorantes, o par repete estereótipos da trajetória de sua etnia na América. Não dá outra. O programa é um sucesso, faz polêmica e leva seu criador a ser alvo tanto da fama como de um grupo de rap, que o elege como um demônio a ser eliminado”.

Por fim, com esta comparação, guardada as devidas proporções, qual o interesse dos idealizadores da série Suburbia? Fazer uma crítica social partindo das representações da vida real de muitos negros, usando também da ficção e melodrama? Objetivando uma discussão sobre tais processos de discriminação? Ou só o simples reforço midiático dos estereótipos que dão ibope e reforçam os condicionantes e práticas racistas. Gostaria de ver no Brasil filmes que retratassem a luta do Movimento Negro brasileiro, com representações da história de grandes ícones como Abdias Nascimento e muitos outros. Filmes que demonstrassem a capacidade, a qualidade e a importância da população Negra brasileira. Quando veremos algo que se assemelhe ao filme Malcom X e O Grande Desafio. Será que os grandes cineastas brasileiros, os grandes patrocinadores não se interessam por este tipo de história? Ou será que elas não vendem e nem dão grandes bilheterias.

Escrito por Silvio Matheus.
Quarta-feira, 12 de dezembro de 2012.