Compartilho neste espaço uma resenha do livro que é um clássico para quem se interessa pelos estudos das Relações Raciais no Brasil. Esta formidável resenha, com uma explanação lúcida e competente, foi realizada por Paulo César Alves, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.
RAÇA, CIÊNCIA E SOCIEDADE
Um livro organizado pelos autores: Marcos Chor Maio & Ricardo Ventura Santos (organizadores). Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996. 252 pp.
(brochura)
A coletânea de
artigos organizada por Marcos Chor Maio (pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz,
Fiocruz) e Ricardo Ventura Santos (professor do Museu Nacional e pesquisador da
Escola Nacional de Saúde Pública) é resultado do seminário Raça, Ciência e
Sociedade, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil, em maio de 1995.
Trata-se de uma feliz e preciosa combinação de textos que, mediante uma
pluralidade de enfoques teórico-metodológicos, revelam na sua totalidade uma
análise multidisciplinar da história, das ciências sociais e, em certa medida,
da literatura para compreender o fenômeno complexo e polifacetado do cenário
racial brasileiro. Pela abrangência e riqueza do tema tratado, a coletânea
retoma com admirável originalidade um antigo debate sobre a cultura brasileira
e a identidade nacional.
Tendo em vista a
composição, o escopo e orientação dos artigos apresentados, o livro pode ser
analisado sob óticas diversas: pode-se empreender uma caracterização dos
diferentes modelos teórico-metodológicos subjacentes aos textos, uma descrição
do "estado atual da arte" nos estudos sobre a questão racial no
Brasil, ou mesmo uma discussão acerca da seleção dos temas específicos que
ganham destaque nos artigos. Limitar-me-ei apenas ao conteúdo do livro e, portanto,
uma apresentação sucinta de cada capítulo.
O livro está composto
por quinze artigos divididos em quatro seções. Cada seção corresponde a um
corte cronológico, identificando e caracterizando de modo paradigmático o
pensamento brasileiro sobre o imbricamento entre raça, ciência e sociedade. Na
primeira parte estão incluídos quatro capítulos que discutem como os discursos
de intelectuais e práticas políticas específicas sobre as questões raciais
ajudaram, na virada do século, a formar uma definição de identidade nacional. O
primeiro trabalho, de John Manuel Monteiro (As "raças" indígenas
no pensamento brasileiro do império), analisa como a penetração no Brasil
de novas idéias sobre raça e evolução teve que dialogar com um contradiscurso
que via no índio, por meio de um processo de mestiçagem, um caminho para o
futuro da civilização brasileira.
O texto seguinte,Condenado pela raça,
absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da
Primeira República, de Nísia Trintade Lima e Gilberto Hochman, discute de
forma muito bem documentada como o movimento pela reforma da saúde pública e
constituição da ciência médica na Primeira República tiveram um papel central e
prolongado na reconstrução da identidade nacional, ajudando a legitimar a
presença do Estado no campo da saúde pública e a superar o estado de barbárie
em que o País se encontrava. A tese fundamental dos autores é a de que, diante
de um país interpretado como doente como dizia o médico Miguel Pereira em
1916, "O Brasil é um imenso hospital" , a campanha pelo
saneamento, ao tentar resolver o quadro mórbido vigente nos "sertões
brasileiros" mediante uma reorganização dos serviços sanitários federais,
contribuiu tanto para a descoberta sociológica da doença, quanto para a
consolidação de uma nova identidade profissional, a do médico especializado em
saúde pública.
Giralda Seyferth é
autora do terceiro capítulo, Construindo a nação: hierarquias raciais e
o papel do racismo na política de imigração e colonização. Partindo da
crença dominante na época de que pertencer a um grupo étnico é o que dá sentido
à individualidade nacional, a autora analisa como o discurso sobre imigração e
raça, fundamentado na idéia da miscigenação, procurava constituir a noção de um
tipo nacional, resultante de um processo seletivo direcionado para o
branqueamento da população. Retornando ao tema da imigração, Joel de Souza
Ramos encerra o último texto da primeira seção do livro, Dos males que
vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável
nas concepções sobre imigração da década de 20. Nesse capítulo, o autor
observa que, em contraposição ao imigrante ideal, o indesejável seria aquele
representado por povos cuja raça limitaria a composição de um tipo eugênico
nacional. Nesse aspecto, a política imigratória da Primeira República procurava
orientar-se basicamente para a formação de um tipo ideal de homogeneidade
racial, cuja miscigenação física e cultural resultaria um tipo brasileiro. Esse
mecanismo pressupunha uma seleção que levasse em conta, além do aumento do
contingente de sangue branco, a "necessidade de se obter os mais
assimiláveis entre os brancos e, quando não fosse possível evitar, os mais
'dóceis' entre as 'raças inferiores' " (p. 81).
A segunda seção do
livro A reinvenção da raça nas décadas de 30 e 40 está
constituída de três textos. Sem pretender estabelecer marcos cronológicos
rígidos e incorporando o debate internacional, todos os três capítulos indagam
sobre o significado da substituição do conceito de raça pelo de cultura. O
primeiro desses textos intitula-se Do saber colonial ao
luso-tropicalismo: "raça" e "nação" nas primeiras décadas
do salazarismo. Seu autor, Omar Ribeiro Thomaz, valendo-se dos trabalhos
apresentados pelas Conferências de Alta Cultura Colonial (evento promovido em
1936 pelo Estado Português na Sociedade de Geografia de Lisboa), observa que
uma grande parte da Intelligentsia, desejosa de retomar os anos de
glória do antigo Império, partilhava a idéia de que os territórios de ultramar
corresponderiam a uma continuação do espírito lusitano. O Brasil representaria
a criação bem-sucedida de Portugal. O luso-tropicalismo de Gilberto Freyre,
nesse aspecto, estaria em compasso com esse ideal, pois, ao advogar as boas
intenções do projeto colonial português, o autor de Casa Grande &
Senzala aponta para a criação de uma democracia racial, uma
homogeneização da nação avessa à violência racial. O artigo de Lourdes
Marínez-Echazábal (Culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina:
deslocamento retórico ou mudança conceitual?) discute, de forma exemplar,
como, a partir da segunda metade do século XIX, a preocupação ontológica ou a
hermenêutica da identidade latino-americana torna-se mais intensa nas exegeses
dos cientistas sociais. Identificando as principais etapas do
"ideologema" da mestiçagem, a autora conclui que o discurso da
etnicidade formulado pelos intelectuais dos anos 20 aos 50 (mais
especificamente Gilberto Freyre e Jorge Amado), ao tentar dissociar raça e
cultura, atualizou a obra de seus antecessores. Ricardo Ventura Santos escreve
o último texto da segunda parte da coletânea Da morfologia às
moléculas, de raça à população: trajetórias conceituais em Antropologia Física
no século XX. Em um estilo claro, conciso, sem se perder em detalhes, o autor
analisa a trajetória do conceito de raça na antropologia física (ou biológica).
A primeira parte do artigo discute o contexto histórico e teórico da transição
híbrida e singular do conceito de raça para o de população, termo chancelado
pela síntese neodarwiniana.
Nesse contexto, argumenta Ricardo, os debates
desenvolvidos pela Unesco, na década de 50, a respeito dos Estatutos
sobre Raça tiveram uma importância especial quanto a essa questão. Por
último, analisando o significado de raça na antropologia física brasileira, o
autor observa a existência de duas grandes linhas de investigação: a primeira,
representada pelo Museu Nacional, caracterizou-se pela continuidade da noção
tipológica de raça; a segunda, centralizou-se na genética de populações.
A terceira parte da
coletânea O Brasil como "laboratório racial": os estudos
sobre relações raciais entre os anos 40 e 60 reúne quatro capítulos
que têm como eixo central a análise das obras de sociólogos e antropólogos,
nacionais e estrangeiros, que investigaram as relações raciais no Brasil entre
os anos 40 e 60. O primeiro texto, de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (Cor,
classes e status nos estudos de Pierson, Azevedo e Harris na Bahia: 1940-1960),
discute os quadros teóricos em que os conceitos de cor, classe e status foram
relacionados nas ciências sociais no Brasil. Com base no exame de três
clássicos (Donaldo Pierson, Marvin Harris e Thales de Azevedo), o autor analisa
duas grandes hipóteses sobre a relação entre cor e posição social: aquela que
teoriza as discriminações raciais como discriminações de classe e aquela que
explica a especificidade do sistema de relações raciais pela permanência de uma
hierarquia estamental criada pela escravidão. No texto seguinte, Maria Lúcia de
Santana Braga escolheu Roger Bastide para desenvolver uma refinada análise (Roger
Bastide, Paisagista). Enfatizando o pluralismo metodológico desse autor,
Maria Lúcia conclui que a obra de Bastide, assim como a de Machado de Assis,
oferece-nos um quadro amplo (paisagístico) da vida e cultura urbana brasileira.
Aliando ciência e arte, Bastide conseguiu ultrapassar os limites de uma visão
restrita sobre as relações raciais que marcou o trabalho de muitos de nossos
estudiosos. O trabalho de Marcos Chor Maio, A questão racial no
pensamento de Guerreiro Ramos, discute a forma como esse autor trata o tema
das relações raciais, partindo do pressuposto de que a abordagem adotada está
intimamente vinculada a determinados aspectos da sua trajetória de sociólogo,
tais como a sua militância no movimento negro e participação na burocracia
estatal. Inspirado no modelo nacional-desenvolvimentista cepalino, o
intelectual baiano acreditava na existência de uma cultura racial brasileira
convivendo com doses elevadas de racismo no País. Para Guerreiro Ramos, essa
situação contraditória só seria passível de resolução com a efetiva
participação dos intelectuais na construção de uma identidade nacional. Maria
Arminda do Nascimento Arruda, no seu trabalho Dilemas do Brasil
moderno: a questão racial na obra de Florestan Fernandes sobre o autor de A
Integração do Negro na Sociedade de Classes, analisa como esse sociólogo
investiga a situação dos negros sob o prisma das formas sociais excludentes e
das possibilidades de integração que têm caracterizado a ordem capitalista
brasileira.
A quarta e última
seção da coletânea Perspectivas contemporâneas acerca da questão
racial traz quatro capítulos que discutem o dilema racial brasileiro
e sua inserção no contexto internacional. Lívio Sansone inaugura essa seção com
o artigo intitulado As relações raciais em Casa Grande & Senzala
revisitadas à luz do processo de internalização e globalização. Trata-se de
um estudo que procura salientar como ohabitus racial e o discurso
luso-tropicalista estão descritos em Gilberto Freyre. Baseado em uma pesquisa
realizada em duas áreas da Região Metropolitana de Salvador, Lívio Sansone
conclui que, apesar do culturalismo e provincianismo das categorias freyrianas,
há muitos pontos de contato entre a realidade baiana e o quadro esboçado em Casa
Grande & Senzala. Joel Rufino dos Santos em um texto curto e objetivo (O
negro como lugar) observa que o negro deve ser entendido como uma
configuração social cujas coordenadas são dadas pelo fenótipo (crioulo),
condição social (pobre), patrimônio cultural (popular), origem histórica
(ascendência africana) e identidade (autodefinição e definição pelo outro).
Yvonne Maggie "Aqueles a quem foi negada a cor do dia": as
categorias cor e raça na cultura brasileira investiga o complexo
sistema de categorização de cores e raças pela cultura brasileira. Analisando o
PNAD de 1976 e as perguntas do censo demográfico, a autora conclui que a
pergunta aberta e sem um contexto definido sobre a cor e raça propiciou um
sistema classificatório que abarca tanto o lugar social, quanto a origem ou
identidade étnica dos entrevistados. Por último, o texto de Carlos Hasenbalg (Entre
o mito e os fatos: racismo e relações raciais no Brasil) trata do racismo e
das desigualdades raciais. Tais questões estão presentes na nossa realidade e
se a convivência harmônica entre grupos raciais permanece no discurso
ideológico brasileiro deve-se, entre outros aspectos, às dificuldades
enfrentadas pelo movimento social dos negros em encaminhar as suas
reivindicações específicas e ampliar a sua base social.
Pelo rápido resumo
acima apresentado, pode-se perfeitamente concluir que o livro Raça,
Ciência e Sociedade é, como diz Gilberto Velho na contracapa, uma
"referência obrigatória para todos os estudiosos de relações raciais".
Fonte da Resenha:
Cad. Saúde
Pública vol.13 n.4 Rio de Janeiro Oct. 1997
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1997000400021