Objetivos e intenções do Onda Negra.

O Onda Negra surge como um desejo de exteriorização de algumas reflexões que estão diretamente ligadas à questão racial. Almejamos com este espaço a problematização e discussão sobre temas como o racismo, o preconceito racial e a discriminação. Possivelmente, veremos também discussões sobre processos que apontam para uma predominância da desigualdade social e racial no nosso país.

Em alguns momentos, apresentaremos sugestões, análises e reflexões de filmes que abordam diretamente ou indiretamente a temática racial, ou, que dialoguem com a mesma. Salientamos que dentro desta proposta não deixaremos de abordar, por exemplo: a questão de gênero, os processos do mundo do trabalho e a questão racial, a questão da violência racial e, principalmente, alguns processos que envolvam reparação e ganhos para a população negra, como no caso das políticas de Ações Afirmativas.

Por último, explicamos que a origem do nome Onda Negra foi pensado a partir do livro da Celia de Azevedo, "Onda negra, medo branco". Nesse livro, a autora estabelece um intenso debate em torno das "questões senhoriais travadas por abolicionistas e imigrantistas ao longo do século dezenove. Decerto esse debate ainda se arrastaria pelo tempo não fosse a intervenção dos próprios escravos com suas ações autônomas e violentas, aguçando os medos da 'onda negra', imagem vívida forjada no calor da luta por elites racistas."

Sendo assim, julguei pertinente fazer uma alusão a esta "onda negra" que se tratava do medo das elites com os retrospectos das lutas anti-escravistas (ou por libertação dos negros escravizados) como por exemplo, a Revolução Haitiana; para tratar dos problemas contemporâneos que envolvem a condição do negro em nossa sociedade. Enquanto as lutas ganham força por ganhos de direitos, por igualdade de condições no mercado de trabalho em relação aos brancos, por políticas de reparação e de inclusão com as Ações Afirmativas, percebe-se que todo esse movimento ainda desperta em alguns grupos da nossa sociedade um incômodo, uma desconfiança e a meu ver um medo.

terça-feira, 24 de junho de 2014

RAÇA, CIÊNCIA E SOCIEDADE.

Compartilho neste espaço uma resenha do livro que é um clássico para quem se interessa pelos estudos das Relações Raciais no Brasil. Esta formidável resenha, com uma explanação lúcida e competente, foi realizada por Paulo César Alves, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.

RAÇA, CIÊNCIA E SOCIEDADE

Um livro organizado pelos autores: Marcos Chor Maio & Ricardo Ventura Santos (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Centro Cultural Banco do Brasil, 1996. 252 pp. (brochura)

A coletânea de artigos organizada por Marcos Chor Maio (pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz) e Ricardo Ventura Santos (professor do Museu Nacional e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública) é resultado do seminário Raça, Ciência e Sociedade, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil, em maio de 1995. Trata-se de uma feliz e preciosa combinação de textos que, mediante uma pluralidade de enfoques teórico-metodológicos, revelam na sua totalidade uma análise multidisciplinar da história, das ciências sociais e, em certa medida, da literatura para compreender o fenômeno complexo e polifacetado do cenário racial brasileiro. Pela abrangência e riqueza do tema tratado, a coletânea retoma com admirável originalidade um antigo debate sobre a cultura brasileira e a identidade nacional.

Tendo em vista a composição, o escopo e orientação dos artigos apresentados, o livro pode ser analisado sob óticas diversas: pode-se empreender uma caracterização dos diferentes modelos teórico-metodológicos subjacentes aos textos, uma descrição do "estado atual da arte" nos estudos sobre a questão racial no Brasil, ou mesmo uma discussão acerca da seleção dos temas específicos que ganham destaque nos artigos. Limitar-me-ei apenas ao conteúdo do livro e, portanto, uma apresentação sucinta de cada capítulo.

O livro está composto por quinze artigos divididos em quatro seções. Cada seção corresponde a um corte cronológico, identificando e caracterizando de modo paradigmático o pensamento brasileiro sobre o imbricamento entre raça, ciência e sociedade. Na primeira parte estão incluídos quatro capítulos que discutem como os discursos de intelectuais e práticas políticas específicas sobre as questões raciais ajudaram, na virada do século, a formar uma definição de identidade nacional. O primeiro trabalho, de John Manuel Monteiro (As "raças" indígenas no pensamento brasileiro do império), analisa como a penetração no Brasil de novas idéias sobre raça e evolução teve que dialogar com um contradiscurso que via no índio, por meio de um processo de mestiçagem, um caminho para o futuro da civilização brasileira. 

O texto seguinte,Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República, de Nísia Trintade Lima e Gilberto Hochman, discute de forma muito bem documentada como o movimento pela reforma da saúde pública e constituição da ciência médica na Primeira República tiveram um papel central e prolongado na reconstrução da identidade nacional, ajudando a legitimar a presença do Estado no campo da saúde pública e a superar o estado de barbárie em que o País se encontrava. A tese fundamental dos autores é a de que, diante de um país interpretado como doente ­ como dizia o médico Miguel Pereira em 1916, "O Brasil é um imenso hospital" ­, a campanha pelo saneamento, ao tentar resolver o quadro mórbido vigente nos "sertões brasileiros" mediante uma reorganização dos serviços sanitários federais, contribuiu tanto para a descoberta sociológica da doença, quanto para a consolidação de uma nova identidade profissional, a do médico especializado em saúde pública.

Giralda Seyferth é autora do terceiro capítulo, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. Partindo da crença dominante na época de que pertencer a um grupo étnico é o que dá sentido à individualidade nacional, a autora analisa como o discurso sobre imigração e raça, fundamentado na idéia da miscigenação, procurava constituir a noção de um tipo nacional, resultante de um processo seletivo direcionado para o branqueamento da população. Retornando ao tema da imigração, Joel de Souza Ramos encerra o último texto da primeira seção do livro, Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. Nesse capítulo, o autor observa que, em contraposição ao imigrante ideal, o indesejável seria aquele representado por povos cuja raça limitaria a composição de um tipo eugênico nacional. Nesse aspecto, a política imigratória da Primeira República procurava orientar-se basicamente para a formação de um tipo ideal de homogeneidade racial, cuja miscigenação física e cultural resultaria um tipo brasileiro. Esse mecanismo pressupunha uma seleção que levasse em conta, além do aumento do contingente de sangue branco, a "necessidade de se obter os mais assimiláveis entre os brancos e, quando não fosse possível evitar, os mais 'dóceis' entre as 'raças inferiores' " (p. 81).

A segunda seção do livro ­ A reinvenção da raça nas décadas de 30 e 40 ­ está constituída de três textos. Sem pretender estabelecer marcos cronológicos rígidos e incorporando o debate internacional, todos os três capítulos indagam sobre o significado da substituição do conceito de raça pelo de cultura. O primeiro desses textos intitula-se Do saber colonial ao luso-tropicalismo: "raça" e "nação" nas primeiras décadas do salazarismo. Seu autor, Omar Ribeiro Thomaz, valendo-se dos trabalhos apresentados pelas Conferências de Alta Cultura Colonial (evento promovido em 1936 pelo Estado Português na Sociedade de Geografia de Lisboa), observa que uma grande parte da Intelligentsia, desejosa de retomar os anos de glória do antigo Império, partilhava a idéia de que os territórios de ultramar corresponderiam a uma continuação do espírito lusitano. O Brasil representaria a criação bem-sucedida de Portugal. O luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, nesse aspecto, estaria em compasso com esse ideal, pois, ao advogar as boas intenções do projeto colonial português, o autor de Casa Grande & Senzala aponta para a criação de uma democracia racial, uma homogeneização da nação avessa à violência racial. O artigo de Lourdes Marínez-Echazábal (Culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual?) discute, de forma exemplar, como, a partir da segunda metade do século XIX, a preocupação ontológica ou a hermenêutica da identidade latino-americana torna-se mais intensa nas exegeses dos cientistas sociais. Identificando as principais etapas do "ideologema" da mestiçagem, a autora conclui que o discurso da etnicidade formulado pelos intelectuais dos anos 20 aos 50 (mais especificamente Gilberto Freyre e Jorge Amado), ao tentar dissociar raça e cultura, atualizou a obra de seus antecessores. Ricardo Ventura Santos escreve o último texto da segunda parte da coletânea ­ Da morfologia às moléculas, de raça à população: trajetórias conceituais em Antropologia Física no século XX. Em um estilo claro, conciso, sem se perder em detalhes, o autor analisa a trajetória do conceito de raça na antropologia física (ou biológica). A primeira parte do artigo discute o contexto histórico e teórico da transição híbrida e singular do conceito de raça para o de população, termo chancelado pela síntese neodarwiniana. 

Nesse contexto, argumenta Ricardo, os debates desenvolvidos pela Unesco, na década de 50, a respeito dos Estatutos sobre Raça tiveram uma importância especial quanto a essa questão. Por último, analisando o significado de raça na antropologia física brasileira, o autor observa a existência de duas grandes linhas de investigação: a primeira, representada pelo Museu Nacional, caracterizou-se pela continuidade da noção tipológica de raça; a segunda, centralizou-se na genética de populações.

A terceira parte da coletânea ­ O Brasil como "laboratório racial": os estudos sobre relações raciais entre os anos 40 e 60 ­ reúne quatro capítulos que têm como eixo central a análise das obras de sociólogos e antropólogos, nacionais e estrangeiros, que investigaram as relações raciais no Brasil entre os anos 40 e 60. O primeiro texto, de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (Cor, classes e status nos estudos de Pierson, Azevedo e Harris na Bahia: 1940-1960), discute os quadros teóricos em que os conceitos de cor, classe e status foram relacionados nas ciências sociais no Brasil. Com base no exame de três clássicos (Donaldo Pierson, Marvin Harris e Thales de Azevedo), o autor analisa duas grandes hipóteses sobre a relação entre cor e posição social: aquela que teoriza as discriminações raciais como discriminações de classe e aquela que explica a especificidade do sistema de relações raciais pela permanência de uma hierarquia estamental criada pela escravidão. No texto seguinte, Maria Lúcia de Santana Braga escolheu Roger Bastide para desenvolver uma refinada análise (Roger Bastide, Paisagista). Enfatizando o pluralismo metodológico desse autor, Maria Lúcia conclui que a obra de Bastide, assim como a de Machado de Assis, oferece-nos um quadro amplo (paisagístico) da vida e cultura urbana brasileira. Aliando ciência e arte, Bastide conseguiu ultrapassar os limites de uma visão restrita sobre as relações raciais que marcou o trabalho de muitos de nossos estudiosos. O trabalho de Marcos Chor Maio, A questão racial no pensamento de Guerreiro Ramos, discute a forma como esse autor trata o tema das relações raciais, partindo do pressuposto de que a abordagem adotada está intimamente vinculada a determinados aspectos da sua trajetória de sociólogo, tais como a sua militância no movimento negro e participação na burocracia estatal. Inspirado no modelo nacional-desenvolvimentista cepalino, o intelectual baiano acreditava na existência de uma cultura racial brasileira convivendo com doses elevadas de racismo no País. Para Guerreiro Ramos, essa situação contraditória só seria passível de resolução com a efetiva participação dos intelectuais na construção de uma identidade nacional. Maria Arminda do Nascimento Arruda, no seu trabalho ­ Dilemas do Brasil moderno: a questão racial na obra de Florestan Fernandes ­sobre o autor de A Integração do Negro na Sociedade de Classes, analisa como esse sociólogo investiga a situação dos negros sob o prisma das formas sociais excludentes e das possibilidades de integração que têm caracterizado a ordem capitalista brasileira.

A quarta e última seção da coletânea ­ Perspectivas contemporâneas acerca da questão racial ­ traz quatro capítulos que discutem o dilema racial brasileiro e sua inserção no contexto internacional. Lívio Sansone inaugura essa seção com o artigo intitulado As relações raciais em Casa Grande & Senzala revisitadas à luz do processo de internalização e globalização. Trata-se de um estudo que procura salientar como ohabitus racial e o discurso luso-tropicalista estão descritos em Gilberto Freyre. Baseado em uma pesquisa realizada em duas áreas da Região Metropolitana de Salvador, Lívio Sansone conclui que, apesar do culturalismo e provincianismo das categorias freyrianas, há muitos pontos de contato entre a realidade baiana e o quadro esboçado em Casa Grande & Senzala. Joel Rufino dos Santos em um texto curto e objetivo (O negro como lugar) observa que o negro deve ser entendido como uma configuração social cujas coordenadas são dadas pelo fenótipo (crioulo), condição social (pobre), patrimônio cultural (popular), origem histórica (ascendência africana) e identidade (autodefinição e definição pelo outro). Yvonne Maggie ­ "Aqueles a quem foi negada a cor do dia": as categorias cor e raça na cultura brasileira ­ investiga o complexo sistema de categorização de cores e raças pela cultura brasileira. Analisando o PNAD de 1976 e as perguntas do censo demográfico, a autora conclui que a pergunta aberta e sem um contexto definido sobre a cor e raça propiciou um sistema classificatório que abarca tanto o lugar social, quanto a origem ou identidade étnica dos entrevistados. Por último, o texto de Carlos Hasenbalg (Entre o mito e os fatos: racismo e relações raciais no Brasil) trata do racismo e das desigualdades raciais. Tais questões estão presentes na nossa realidade e se a convivência harmônica entre grupos raciais permanece no discurso ideológico brasileiro deve-se, entre outros aspectos, às dificuldades enfrentadas pelo movimento social dos negros em encaminhar as suas reivindicações específicas e ampliar a sua base social.

Pelo rápido resumo acima apresentado, pode-se perfeitamente concluir que o livro Raça, Ciência e Sociedade é, como diz Gilberto Velho na contracapa, uma "referência obrigatória para todos os estudiosos de relações raciais".

Fonte da Resenha: 

Cad. Saúde Pública vol.13 n.4 Rio de Janeiro Oct. 1997
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1997000400021