Objetivos e intenções do Onda Negra.

O Onda Negra surge como um desejo de exteriorização de algumas reflexões que estão diretamente ligadas à questão racial. Almejamos com este espaço a problematização e discussão sobre temas como o racismo, o preconceito racial e a discriminação. Possivelmente, veremos também discussões sobre processos que apontam para uma predominância da desigualdade social e racial no nosso país.

Em alguns momentos, apresentaremos sugestões, análises e reflexões de filmes que abordam diretamente ou indiretamente a temática racial, ou, que dialoguem com a mesma. Salientamos que dentro desta proposta não deixaremos de abordar, por exemplo: a questão de gênero, os processos do mundo do trabalho e a questão racial, a questão da violência racial e, principalmente, alguns processos que envolvam reparação e ganhos para a população negra, como no caso das políticas de Ações Afirmativas.

Por último, explicamos que a origem do nome Onda Negra foi pensado a partir do livro da Celia de Azevedo, "Onda negra, medo branco". Nesse livro, a autora estabelece um intenso debate em torno das "questões senhoriais travadas por abolicionistas e imigrantistas ao longo do século dezenove. Decerto esse debate ainda se arrastaria pelo tempo não fosse a intervenção dos próprios escravos com suas ações autônomas e violentas, aguçando os medos da 'onda negra', imagem vívida forjada no calor da luta por elites racistas."

Sendo assim, julguei pertinente fazer uma alusão a esta "onda negra" que se tratava do medo das elites com os retrospectos das lutas anti-escravistas (ou por libertação dos negros escravizados) como por exemplo, a Revolução Haitiana; para tratar dos problemas contemporâneos que envolvem a condição do negro em nossa sociedade. Enquanto as lutas ganham força por ganhos de direitos, por igualdade de condições no mercado de trabalho em relação aos brancos, por políticas de reparação e de inclusão com as Ações Afirmativas, percebe-se que todo esse movimento ainda desperta em alguns grupos da nossa sociedade um incômodo, uma desconfiança e a meu ver um medo.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Relações intra/inter-raciais. O quê está em discussão?



Hoje acordei com uma vontade de expor algumas reflexões sobre uma difícil questão que é a relação entre pessoas da mesma raça e de raças diferentes. Depois de algumas leituras de textos que abordaram nesta última semana tal questão, decidi por para fora tal inquietação.

Quando utilizo o termo raça não entendam pelo conceito biológico. Mas sim como um conjunto de fatores e características sociais e culturais que designam uma diferenciação entre os humanos. Posto que para muitos desses seres humanos se sobressaiam algumas características que compõem suas identidades de grupos, por exemplo, negros, brancos, índios e amarelos. Em resumo, o sentido de raça assume um caráter sociológico.


Antes de começar informo que acrescentarei neste texto algumas passagens que remontam algumas experiências de relações inter e intra-raciais, para que possamos não só ilustrar, mas problematizar o que esperamos de tais questionamentos sobre essas relações. Os textos que alimentaram esta reflexão se encontram nas páginas das Blogueiras Negras e Geledés.

No primeiro momento será legal entendermos algumas diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos, de forma bem sucinta, no que tange ao processo de escravização, abolição e a própria questão racial. Creio que ao revirarmos essa comparação nas suas similaridades e diferenças, sendo essa última a que mais se destaca, conseguiremos avançar mais um pouco no que diz respeito às relações intra/inter-raciais no nosso país. Sei que já existem muitas pesquisas e estudos que sempre retomam esta comparação, mas acho fundamental ficarmos sempre atentos aos detalhes dos processos desses dois países, pois, como disse, creio que é a partir dele que perceberemos as nossas especificidades e complexificações.

Antes do processo de abolição da escravidão nesses dois países, poderia afirmar que a relação dos senhores e escravos, a violência com que eram tratados os negros capturados da África e os seus descendentes, continha um determinado grau de semelhança. O negro era visto como uma “coisa”, ou melhor, uma “propriedade” desprovida de alma e humanidade. É fato que existiam diferenciações nas relações entre homens negros e mulheres negras, homens brancos e mulheres brancas, homens negros e mulheres brancas e homens brancos e mulheres negras.

Sabemos que nessas escalas de diferenciações o homem negro e a mulher negra eram inferiorizados e violentados sempre que colocados em relação aos brancos. Acrescentando a tudo isso, entra na história do povo negro a idealização do exótico e da sexualidade que sempre marcaram essas relações.
Era comum naquela época o homem branco imputar castigos bárbaros para atingir a virilidade do homem negro (pairavam na atmosfera que esses negros poderiam despertar o desejo e se relacionarem com suas mulheres brancas). No que tange às mulheres negras, sobravam-lhes os abusos e os estupros cometidos pelo homem branco. Além disso, muitas dessas mulheres tinham que se relacionar sexualmente com outros negros, em muitos casos por ordem do próprio senhor, para o propósito de reprodução da mão-de-obra escrava.
Com todo esse cenário, como pensamos a construção das relações intra/inter-raciais perpassando as histórias dessas raças?

Com o fim da escravidão nos Estados Unidos surgiu todo um processo de repensar este negro, não só como parte integrante da constituição desse país, mas como um cidadão de direitos que necessitava ter igualdade de oportunidades na sociedade capitalista que se iniciava naquele período. Depois da libertação e das emendas encabeçadas por Lincoln o que se viu foi o alastramento da segregação.

Numa entrevista do professor Antonio Sergio Guimarães, ele identifica no EUA duas esferas raciais que compuseram por muito tempo a organização social desse país. Os grupos dos negros e o grupo dos brancos. Ambos os grupos com uma elite, uma classe média, uma classe pobre e etc..

É a partir desse processo segregacionista tão declarado que começa a diferenciação com o nosso contexto brasileiro. Pelo menos a meu ver. Lá não foi difundida a ideia de mistura racial, ou, miscigenação. Ou se é negro ou branco. Não existe o meio termo. Também é fato que existiram as relações inter-raciais mesmo com todas as dificuldades. E, mesmo assim, numa dimensão política e social, predominavam a separação dos negros e dos brancos.

Pensando no Brasil, o quê se observou no processo abolicionista? Estamos mais do que escolados que não houve uma política efetiva no período pós-abolição que pensasse nos negros e nas suas condições de integração social com direitos e igualdade de oportunidades (faço aqui uma referência ao livro do Joaquim Nabuco, Abolicionismo, que traz algumas passagens que mostram a tentativa de se instaurar algumas políticas de reparação para a população negra, mas que foram todas derrotadas pela elite branca que se encontrava no poder político da época).

Destaco também o forte incentivo à imigração europeia que potencializou a marginalização de muitos negros no nosso país e, especificamente, em São Paulo (Ver o livro de Florestan A integração do negro na sociedade de classe I e II). O que tivemos foi um ideário construtivista de nação civilizada e branca. Esse era o pensamento da elite paulistana e brasileira.

Dito isso, fico a me questionar em como pensar a estrutura de relações intra/inter-raciais no Brasil com esta proposta de branqueamento? É sabido que socialmente os pretos eram preteridos em relação aos "mulatos" (coloco esse termo em aspas por não concordar e por saber que sua origem etimológica se refere à mula), esses por sua vez, preteridos em relação aos estrangeiros brancos e europeus. Ser preto era (ou é) carregar todo um estigma de animalização, inferioridade que bem sabemos.

Portanto, compreendo que muitos negros tentaram apagar os traços da sua negritude e sua ancestralidade, visto as inúmeras implicações que o fato de estar associado à condição do negro poderia causar. Entendendo essa condição como um bojo que estão incluídas as dimensões sexuais, trabalhistas e sociais. Sendo assim, pensar na "(in) consciência" das relações inter-raciais que visa somente branquear a sua geração futura sem problematizar a fundo o nosso contexto brasileiro, alimentado pelos ideais freirianos, dessa miscigenação harmoniosa que diluiu todos os conflitos que pudessem ter existido entre as três raças que vão do físico ao psíquico, para mim, é muito perigoso. Pois, pode soar que queremos retomar uma prática segregacionista e que só as relações intra-raciais podem manter viva a cultura e a perpetuação do povo negro. Sei que esse não é o propósito dos textos citados no inicio desse artigo. Mas também sei que muitos podem ter este tipo de interpretação ao ler tais textos (espero que não tenham).

Sobre as experiências vividas, lidas e ouvidas de relações intra/inter-raciais, exponho alguns exemplos que julgo muito pertinentes para pensarmos o que visamos ao problematizar tais questões.

Escutamos muito aqui no Brasil que somos todos iguais, que aqui não existe esta história de racismo e muito menos preconceito. Mas será que é verdade? Existe ou não uma segregação? Se existe uma segregação, ela é explicita ou velada? No lugar de segregação, caso seja uma palavra muito forte para o nosso contexto, proponho que a troquemos pelas palavras racismo e discriminação, aplicando-as no ato de nos relacionarmos com parceiras ou parceiros da mesma raça ou de raças diferentes.

Primeiro caso: Um garoto negro e uma garota branca namoram e vivem numa boa sem perceber as possíveis implicações que as suas raças, em relação, poderiam causar para algumas pessoas. Essas pessoas não eram os seus amigos e amigas que até o momento os viam como um casal “normal”. Mas essa relação interessaria a uma das famílias. A família do garoto negro, ao ficar sabendo, não fez nenhum comentário que desprestigiasse a relação dos dois. Mas a família da garota branca, especificamente a sua mãe, não gostou muito deste namoro. O garoto negro ao ir à casa da futura sogra para conhecer a família da sua namorada não podia imaginar o que lhe aguardava. Ao ser apresentado a mãe da sua namorada, que estava toda contente pela ocasião, não soube o que fazer ao ver a reação da mãe dela. A senhora ao ver o namorado da sua filha, um negro, não esboçou a mínima intenção de cumprimentá-lo. Continuou a ver seu programa de domingo e lá ficou. O garoto negro, sem entender direito a situação, recolheu sua mão e dirigiu seu olhar para a sua namorada. Depois desse acontecido não demorou muito para que ele quisesse ir embora. Desse fato em diante, a relação só degringolou. Eles não tinham mais paz. A mãe da sua namorada não deixava mais ela sair com ele. O máximo que ela permitia era ir à escola, pois, ela não podia impedir a filha de estudar.

O que tiramos dessa história? Que medo é este que o garoto negro levava à mãe da garota branca? Mas espera aí! Nós não somos todos iguais? Acho que não. A relação não foi para frente e alguns anos depois a garota branca começou um namoro com um garoto branco.

Segundo caso: Um garoto negro namora uma garota negra. A relação parecia que caminhava bem no inicio. Mas uma coisa que lhe chamava a atenção era que a garota negra em nenhum momento se referia à cor, à raça e a nenhum tipo de assunto que tocasse na questão racial. Mesmo assim, ele achava normal e seguiu em frente. Ele admirador da estética negra, decide resgatar e valorizar suas raízes fazendo um rasta. Em seguida, a reação de todos foi de “choque”. A família dele ficou dividida por conta dos estereótipos que os negros que usam rasta sofrem por assumir tal estética. Mas ele seguiu em frente. O que restava era o entendimento e aceitação da sua namorada. Ela, uma negra, certamente entenderá. Doce ilusão desse jovem garoto. Ela não entendeu e disse de bate pronto que “aquilo” na sua cabeça iria feder e que era coisa de malandro. Foi categórica - “Não gostei”. E agora? Como ele sempre foi um garoto de atitude manteve-se firme e seguiu com seu rasta, entre posturas e comentários que estavam incluídos numa ideologia do branqueamento, por parte dela e de alguns familiares. Claro que ela poderia ter seu cabelo liso, seus comentários que sempre associavam como belo e bom o que vinha sempre dos brancos. Mas, mesmo com tudo isso, não pensou num único momento sequer que essa é a estética que ele gostava e admirava. Se ao menos respeitasse a consciência racial daquele garoto que se formava naquele período já seria de bom tamanho. Mas como o que ocorreu foi o contrário, mais uma vez uma relação se esvai.

Nesse segundo caso, falei em consciência racial. Será que está aí o segredo e a chave de toda esta problematização?

Só mais um e o último caso: o de um homem negro e de uma mulher branca, ambos com uma consciência racial afinadíssima. Eles se relacionam a mais de um ano. Sempre nas suas conversas e discussões perpassam o tema da questão racial, de gênero, da violência, do trabalho e outras questões sociais. Aos olhos de muitos: esse negro quer branquear a raça e esta mulher branca quer ficar com mais um preto por todo o retrospecto histórico que o homem negro carrega e que já foi falado anteriormente. Mas vos digo que não é verdade.   Quem disse que toda mulher branca e homem negro pensa em ter filhos? Quem disse que esse negro racionaliza a branquialização da sua raça? E se lhes dissessem que eles adotaram uma menina negra? Esse casal seria legitimado? A cumplicidade dos dois quando discutem a questão racial põem em cheque as atitudes e pensamentos racistas, avançam nas problematizações e reflexões sobre muitas questões sociais e principalmente sobre a temática racial.  O que pensar desses três casos?

Indico a leitura de dois capítulos do livro Pele negra, máscara branca, do Fanon. Ambos se intitulam: "O homem de cor e a mulher branca" e o outro "A mulher de cor e o homem branco”. Nesses dois capítulos Fanon problematiza as discussões sobre o desejo vistas no Freud, a noção de constituição vista no Lacan e opta pela noção de estrutura. Ele ainda discuti sobre as neuroses vividas por alguns negros e negras que no meu entender são frutos de um violento processo colonial que não só violentou os seus corpos mas as suas mentes. Fanon traz grandes problematizações que nos fazem repensar essas estruturas.

Contudo, tentei problematizar essa questão e quando temos este intuito incorremos em algumas generalizações. Mas informo que existem as exceções.  Logo, o meu objetivo ao fazer esta explanação e utilizar os casos como exemplo, foi apontar para a questão da conscientização racial que a meu ver torna-se a pedra de toque para a compreensão das relações intra/inter-raciais. Existem negros, brancos, índios e amarelos que reproduzem o racismo e a discriminação sem saber (ou até mesmo sabendo) que estão reproduzindo.

Destacar os estudos e rediscutir essas questões que apontam para um branqueamento e uma “rejeição” para com/e entre os negros e negras acho de grande importância. Todavia, não creio que devamos ficar só nelas. Há muito mais a ser feito.  Temos que difundir mais esse tema visando compreender as reentrâncias desse debate no Brasil. E quando falo (re) estudar estou me incluindo neste intento.


Por fim, entendo que para além da problematização das relações intra/inter-raciais, o que se mostra fundamental na minha leitura é o surgimento e/ou o reforço de um amplo processo de conscientização racial para brancos, negros, índios e amarelos.  Visando com isso, não cair em questões que possam ser mal interpretadas e que nos levem a exaltarmos algumas bandeiras que estão descontextualizadas do processo de formação social do povo brasileiro. Povo esse que não é homogêneo. E nem harmonioso como muitos pensam. Os conflitos étnicos raciais estão ai e persistem. As relações intra e inter-raciais também. Voltar no passado para reestruturar não dá. E nem creio que seja esse o caminho. Então, o que nos resta é prosseguir e ir reproblematizando observando sempre as especificidades das nossas relações. Por isso, precisamos trazer essas questões à tona para que através do debate se instaure a conscientização e, assim, quem sabe, o fim de práticas racistas e discriminatórias. 







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