Objetivos e intenções do Onda Negra.

O Onda Negra surge como um desejo de exteriorização de algumas reflexões que estão diretamente ligadas à questão racial. Almejamos com este espaço a problematização e discussão sobre temas como o racismo, o preconceito racial e a discriminação. Possivelmente, veremos também discussões sobre processos que apontam para uma predominância da desigualdade social e racial no nosso país.

Em alguns momentos, apresentaremos sugestões, análises e reflexões de filmes que abordam diretamente ou indiretamente a temática racial, ou, que dialoguem com a mesma. Salientamos que dentro desta proposta não deixaremos de abordar, por exemplo: a questão de gênero, os processos do mundo do trabalho e a questão racial, a questão da violência racial e, principalmente, alguns processos que envolvam reparação e ganhos para a população negra, como no caso das políticas de Ações Afirmativas.

Por último, explicamos que a origem do nome Onda Negra foi pensado a partir do livro da Celia de Azevedo, "Onda negra, medo branco". Nesse livro, a autora estabelece um intenso debate em torno das "questões senhoriais travadas por abolicionistas e imigrantistas ao longo do século dezenove. Decerto esse debate ainda se arrastaria pelo tempo não fosse a intervenção dos próprios escravos com suas ações autônomas e violentas, aguçando os medos da 'onda negra', imagem vívida forjada no calor da luta por elites racistas."

Sendo assim, julguei pertinente fazer uma alusão a esta "onda negra" que se tratava do medo das elites com os retrospectos das lutas anti-escravistas (ou por libertação dos negros escravizados) como por exemplo, a Revolução Haitiana; para tratar dos problemas contemporâneos que envolvem a condição do negro em nossa sociedade. Enquanto as lutas ganham força por ganhos de direitos, por igualdade de condições no mercado de trabalho em relação aos brancos, por políticas de reparação e de inclusão com as Ações Afirmativas, percebe-se que todo esse movimento ainda desperta em alguns grupos da nossa sociedade um incômodo, uma desconfiança e a meu ver um medo.

sábado, 23 de agosto de 2014

A importância e atualidade do curta “Vista a minha Pele” - Algumas reflexões


Por Soraia Cavalcante

No curta metragem “Vista Minha Pele” é destacado de forma inteligente a ausência do negro na televisão, no cinema, nas revistas, enfim, na mídia, fazendo-nos refletir sobre a presença do preconceito e da discriminação racial presente em nossa sociedade.

Outro aspecto destacado foi à tentativa do negro, em modificar o seu cabelo, sua fisionomia, para se tornar um pouco mais aceito e menos discriminado pela sociedade.

O curta teve como foco principal a escola, já que é um local privilegiado para se combater ou perpetuar o racismo. Nesse ambiente, foi destacada a discriminação racial pelos colegas, o silenciamento em alguns momentos, da personagem principal vítima do preconceito e de um jovem que desiste de estudar, porque não aguenta a pressão e a rejeição por parte dos professores, o que é destacado no trabalho de Rosemberg, 2006, referente ao abandono de alunos negros da escola.

É apresentado um conflito entre aqueles que achavam que a jovem teria que aceitar a sua situação, deixando os sonhos de lado, e caminhando de acordo com aquilo que a sociedade esperava que ela pudesse alcançar, enquanto representante de uma “raça” inferior, mas de outro lado, havia pessoas que não aceitavam a injustiça social e acreditavam que somente a partir da luta, da resistência e do desafio, seria possível o caminho para a mudança.

Nesse momento, acho interessante destacar a pesquisa organizada por Silvério (2010), em que é destacada a importância de um trabalho de valorização das diferenças, já que tal postura política propicia uma ruptura ou abrandamento da homogeneização construída em nossa sociedade, sobre a existência de uma cultura universal.
Destaca ainda, que,

A expansão dos direitos, decorrente das transformações nas concepções de liberdade do século XXI, inseriu a questão da diferença enquanto enfrentamento da condição de subalternidade, ou seja, a diferença passou a ser politizada visando o reconhecimento social. (SILVÉRIO, Valter Roberto et all. 2010 p.126)

        
Aliás, é demonstrada a ausência da história do povo africano ou de sua resistência no país, e a ênfase na escravidão e submissão de um povo.

Em um determinado momento do curta “Vista a Minha Pele”, o professor olha para a personagem vítima do preconceito, com dó, pensa em sua alimentação, na falta de empenho por parte da família da adolescente, destacando uma das concepções utilizadas no Brasil, para justificar a desigualdade no desempenho escolar entre crianças brancas e negras.

De acordo com a pesquisa organizada por Silvério (2010), na década de 1970, as tentativas de análise e compreensão das causas do fracasso e evasão escolar se concentraram, no debate acadêmico, em torno das carências afetivas e alimentares.

Portanto, visando diminuir tais carências, introduziram-se políticas públicas compensatórias, como a merenda escolar, no intuito de diminuir a desnutrição e consequentemente a dificuldade de aprendizagem.

Mas esta foi apenas uma visão dentre várias outras presentes no Brasil, para justificar a desigualdade na aprendizagem escolar.

As teorias científicas do racismo, apresentadas em fins do século XIX, na Europa, tiveram repercussão no Brasil, partindo do pressuposto da inferioridade das culturas não brancas, daí a crença na inferioridade intelectual do negro.

Inicia-se uma política de branqueamento da população, em defesa da mestiçagem, da mistura entre negros, brancos e indígenas, procurando aumentar o “grau de inteligência” da população brasileira, que era em sua maioria negra. Há um incentivo para a entrada de europeus no país, bem como a proibição da migração de africanos.
Surge uma política em defesa da presença de uma democracia racial, representada pelo mestiço, defendida entre outros autores, por Gilberto Freyre.

Porém, de acordo com as pesquisas apresentadas pelo IBGE, em que foi destacado o baixo desempenho escolar dos alunos das classes populares, alguns pesquisadores, como o sociólogo Florestan Fernandes e Roger Bastide, em meados do século XX, colocam em xeque o mito da democracia racial, já que as pesquisas apontavam nitidamente desvantagens da população negra no comparativo à população branca.

Defende-se neste momento, que a questão racial estava subordinada à temática de classes sociais. Florestan acreditava que o racismo seria superado pelo avanço da modernização capitalista, com a ampliação do modelo urbano-industrial, ou seja, que o problema estava na desigualdade social e não racial.

Isto porque, como mostra a pesquisa realizada por Rosemberg (2006), a grande massa de pesquisas educacionais relacionados ao baixo desempenho das classes populares, era desagregada da relação cor/raça, bem como de gênero, dificultando uma visão real dos grupos em desvantagem, como mulheres e negros.

Tivemos o retorno da crença da democracia racial e, portanto, um abandono de políticas públicas voltadas ao combate da desigualdade, durante a ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985.

Nesse momento, há uma defesa da ideia de uma síntese cultural única, no qual os elementos culturais brancos, indígenas e negros, compartilhariam de uma aprendizagem a partir de uma educação universal em que todos teriam as mesmas condições de reconhecimento, visão defendida pelos franceses.

Aliás, essa igualdade de condições foi um dos aspectos problematizados no curta “Vista a Minha Pele”.

Somente, a partir do final da década de 1970, com a atuação do Movimento social negro, que integrou ações como o combate e a denúncia das práticas discriminatórias e racistas com a apresentação de demandas nos campos da educação, saúde, segurança, habitação, mercado de trabalho, entre outros, a partir da alteração das políticas públicas, denominadas de políticas de promoção da igualdade racial e políticas de ação afirmativa, é que algumas mudanças começam a aparecer.

O mito da democracia racial é desconstruído, bem como as falsas teorias biológicas e culturais.

Ações como a campanha “Não deixe sua Cor passar em Branco”, para o Censo Demográfico de 1980, propõem mudanças a partir do processo de redemocratização da sociedade brasileira, juntamente com a Lei 10639, de 2003 e a recente aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, com o intuito de ampliar direitos à diversidade étnico-racial, expressa no respeito às diferenças, e na luta por seu correto reconhecimento.

No entanto, a pesquisa de Rosemberg (2006), chama a atenção para a fragilidade dos modelos teóricos que vêm embasando a interpretação de dados macro, a partir de pesquisadores menos experientes, desconsiderando os processos sociais que lhe dão significado.

Defende a formação de recursos humanos saídos da comunidade negra, para o tratamento e interpretação de dados macro, tanto relacionados aos estudos da educação como das relações sociais, que geralmente são feitos por pesquisadores brancos.

Para finalizar, gostaria de comentar o título do curta “Vista a minha Pele” e a proposta em que apresentaram a visão do racismo e da discriminação, colocando pessoas brancas numa situação de inferioridade e discriminação, convidando-nos realmente a refletir sobre todo um preconceito em função da pele, da construção do racismo em torno de um continente.

Ver o curta:




Sobre a autora:

Soraia Esteves Cavalcante trabalha há 21 anos na área da Educação. Leciona História na rede Estadual de Ensino para o Ensino Fundamental, e também trabalha com as crianças pequenas, da Educação Infantil, pela Prefeitura de Guarulhos.
Tem como foco e interesse, pesquisas relacionadas ao tema “diversidade étnico-racial”.  Além da graduação em História, possui especialização em Educação Infantil pela USP, e especialização em História, pela UNICAMP. Durante a especialização teve a oportunidade de pesquisar sobre o trabalho com a diversidade étnico-racial na Educação Infantil, bem como, procurou analisar uma obra literária, considerada o primeiro romance escrito no Brasil por uma mulher negra – Maria Firmina dos Reis, que publicou em 1859 a obra “Úrsula”.
Realizou cursos voltados para as seguintes temáticas: “Educação, Africanidades, Brasil", pela Universidade de Brasília; e, atualmente, “Gênero e Diversidade na Escola”, pela UFSCar.  Esse último, como a própria Soraia nos colocou – me ajudou a ampliar ainda mais os horizontes, com relação não apenas à diversidade étnico-racial, mas também quanto à questão do gênero e sexualidade.


Referências utilizadas:

ROSEMBERG, Fúlvia. Estatísticas Educacionais e Cor/Raça na Educação Infantil e no Ensino Fundamental: um balanço. Disponível em: http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/eae/arquivos/1284/1284.pdf. Acesso em 21.jan.2014.


SILVÉRIO, Valter Roberto et all. “As relações étnico-raciais e a educação” in: Richard Miskolci (org). Marcas da Diferença no Ensino Escolar, São Paulo: EdUFSCar, 2010, pp. 120-144.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O que entendemos e podemos refletir sobre Branquitude?

Poderia nesta postagem discorrer sobre o que esta longa passagem, do livro, Psicologia Social do Racismo - Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil, tem a nos dizer. Mas preferi transcrever o trecho visto a sua importância e potencialidades de reflexões que podem ser retiradas dele ou da discussão proposta pelas autoras.

O problema estrutural do racismo não é e nem pode ser somente uma culpa do negro ou somente um legado da escravidão. Existem outros fatores, imersos de complexidades, nas relações raciais brasileiras e um destes é a questão da Branquitude. O que se pode dizer sobre a percepção do branco e o seu papel como agente difusor de práticas e comportamentos racistas seja no passado seja na atualidade? O trecho a seguir foi transcrito das páginas 42-45 do livro acima.

[Uma psicóloga norte-americana, afirma que os brancos negam inicialmente qualquer preconceito pessoal, tendendo a posteriormente reconhecer o impacto do racismo sobre a vida dos negros, mas evitando reconhecer o impacto sobre as suas próprias vidas. Ela destaca o depoimento de uma das mulheres brancas que participava do curso sobre relações raciais na universidade:

– como uma pessoa branca, me dei conta de que pensava sobre racismo como alguma coisa que coloca outras pessoas em desvantagem, mas não tinha pensado no aspecto de seus resultados, o privilégio dos brancos, o que colocava vantagem... Eu via o racismo somente como atos individuais de agressão, não como um sistema invisível conferindo dominância para o meu grupo. –

Janet Helms, descreve a evolução de uma possível identidade racial branca não-racista que pode ser alcançada se a pessoa aceitar sua própria branquitude, e as implicações culturais, políticas, socioeconômicas de ser branca, definindo uma visão do eu como um ser racial.

Ela identifica seis estágios no seu modelo de desenvolvimento da identidade racial branca: contato, desintegração, reintegração, falsa independência, imersão/emersão e autonomia.

O estágio inicial, de contato, geralmente inclui uma curiosidade primitiva ou medo de pessoas negras, baseada em estereótipos aprendidos com amigos, na família ou na mídia, cujo objetivo, dentre outros, era restringir a própria consciência das questões raciais e a interação com as pessoas negras. Pessoas que estão nesse estágio, quando querem elogiar um negro, fazem comentários do tipo: “Você não age como uma pessoa negra”.

Algumas dessas pessoas podem permanecer neste estágio definitivamente, porém, certos tipos de experiência (interação crescente com pessoas negras e novas informações sobre racismo), às vezes, levam a uma nova compreensão da existência do racismo institucional e cultural, o que pode assinalar o início do estágio de desintegração.

Neste estágio aparece o desconforto da culpa, vergonha e, algumas vezes, raiva diante da identificação de suas próprias vantagens por serem brancos e o reconhecimento do papel dos indivíduos brancos na manutenção do sistema racista.

Para reduzir este desconforto, as pessoas podem convencer a si própria de que racismo realmente não existe ou, se existe, é culpa das vítimas.

Neste ponto, o desejo de ser aceito pelo seu próprio grupo racial, no qual a crença dissimulada ou explicita na superioridade branca está muito presente, pode levar a pessoa a readequar seu sistema de crenças para tornar-se mais coerente com a aceitação do racismo. (Podemos identificar este ponto como a falsa independência)

A culpa e a ansiedade associadas com a desintegração podem ser redirecionadas sob a forma de medo e raiva contra negros, que são agora acusados de ser fonte de mal-estar emocional.

Janet Helms sugere que é realmente fácil para os brancos ficarem paralisados no estágio da reintegração, particularmente se é possível evitar negros. Todavia, se há um catalisador para continuar a auto-reflexão, a pessoa questiona sua definição de ser branco e a justificação do racismo.

O indivíduo experimenta, então, um senso de alienação em relação aos outros brancos que não experimentaram o seu próprio racismo.

Desconfortável com sua própria branquitude, ainda incapaz de ser verdadeiramente qualquer coisa, o indivíduo pode buscar uma nova maneira, mais confortável, de ser branco. Esta busca é a característica do estágio de desenvolvimento imersão/emersão.
Estudar sobre brancos anti-racistas pode também oferecer aos negros a esperança de que é possível ter aliados brancos.

Para brancos, a internalização de uma nova percepção do que é ser branco é a tarefa básica do estágio de autonomia. Os sentimentos positivos associados a esta redefinição energizam os esforços pessoais para confrontar a opressão e o racismo na sua vida cotidiana. É um processo sempre em andamento, no qual a pessoa precisa estar continuamente aberta a novas informações e novas formas de pensar sobre variáveis culturais e raciais.

Os estudos de Edith Piza e Janet Helms são fundamentais porque nos auxiliam a focalizar o problema das relações raciais como um problema das relações entre negros e brancos e não como um problema do negro, como habitualmente se faz no Brasil; como se o branco não fosse elemento essencial desta análise, como se identidade racial não tivesse fortes matizes ideológicos, políticos, econômicos e simbólicos que explicam e, ao mesmo tempo, desnudam o silêncio e o medo.]



Livro: Psicologia Social do Racismo - Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil – Iray Carone e Maria Aparecida Silva Bento.

Observação: o livro da Janet E. Helms é o Black and White racial identity: theory, research and practice. New York: Greenwood Press, 1990.