O
texto a seguir não tem nenhum intuito de discutir os fatores partidários que
levam determinados grupos a implicarem com o Joaquim Barbosa e nem o propósito
de fazer campanha eleitoral para a sua candidatura à presidência da república.
O meu objetivo reflexivo, neste texto, nada mais é do que apontar para questões
que podem estar por trás dessa “perseguição” midiática, política e até pessoal
que o Joaquim vem vivenciando.
É
notícia velha, mas não menos importante, o fato que o atual presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF) é o primeiro negro a assumir tal posição. Dito isso,
surgem algumas questões que venho pensando e observando nas redes sociais, em
algumas postagens e comentários. Por qual motivo a imagem, alguns fatos,
algumas atitudes e posturas do Joaquim Barbosa se tornam alvo de tantas
manifestações, reclamações, indagações positivas e negativas, sendo esta
última, umas das que mais venho observando ultimamente?
Será
que já paramos para pensar o que representa para a nossa sociedade brasileira ver
e ter o primeiro negro num cargo de tamanho poder no Brasil? Mesmo com todo o
histórico do nosso passado colonial que bem sabemos? Destaco que ele mesmo, em
entrevista, vai apontar o Itamaraty como uma das instituições mais
discriminatórias do nosso país. Talvez vocês não saibam, mas o Joaquim Barbosa
antes de ser indicado para o STF, pelo ex-presidente Lula, já havia passado
numa prova para o Itamaraty e só não assumiu o concurso por que não passou na
entrevista que era uma das etapas finais do referido concurso. Aqui vai um
trecho da sua entrevista:
Ele
usou a expressão eliminar indesejados.
Indesejado por quê? A partir dessa colocação do Joaquim Barbosa é que chamo à
atenção para o que apontei no título deste texto.
O
que podemos ressaltar de incomum e alusivo na relação do Joaquim Barbosa no STF
com as relações dos negros (entendido aqui como os negros da Casa Grande e os
negros da Senzala, guardadas as devidas proporções) e os senhores da Casa
Grande?
Se
pensarmos no âmbito da relação do negro da Casa Grande com os seus senhores, visto
algumas exceções, é bem verdade que existiram alguns choques de interesses
nessa relação. Como que entendo esses choques? Não é verdade que todo negro da
Casa Grande sempre teve uma postura de subserviência pelo simples desejo de
servir; outro fato, é que num determinado momento da história escravista do
nosso país, alguns negros que conviveram sob este teto souberam aproveitar
algumas oportunidades para potencializar a resistência, a luta anti-escravista
e mais a frente a anti-racista, em parceria com negros da Senzala. Almejando
com essa atitude o fim da escravidão.
É
sabido também que muitos negros se perderam neste caminho se deixando seduzir
pelo desejo da brancura, pelo desejo e uso fruto das “benesses” advindas tanto
do convívio quanto do status de fazer
parte da Casa Grande. Todavia, o que quero destacar aqui é a postura daquele negro
que não esquece a sua origem e a importância de se aliar aos negros da Senzala
para alcançar a transformação real da sua condição de escravo. Visando, com
isso, a extinção das desigualdades que os aprisionam numa espécie de
marginalização, degradação e violência que tanto aflige o seu povo.
Neste
convívio dentro da Casa Grande é claro que o senhor observa os passos desse
negro e sabe dos riscos que corre por tê-lo ali tão perto. O medo é constante.
O senhor precisa de estratégias para atrair o negro e fazer com que ele se perca
da construção histórico-cultural do seu povo. O senhor não imagina e nem espera
ver esse negro como o dono ou com poder de mando e desmando na Casa Grande. É
algo inimaginável! Mas também não é impossível. O que era necessário fazer para
que eles se protegessem? Para que preservassem a hereditariedade do poder e da
riqueza familiar? Sobre isso, leiam as palavras de um especialista no assunto e
que por muitos anos prestou acessória a muitos donos de escravos nos Estados
Unidos.
[Virginia,
1712.
Senhores:
...
Tenho
comigo um método de controle de escravos negros. Eu garanto que se vocês
implementarem da maneira certa, controlarão os escravos no mínimo durante 300
anos. Meu método é simples e todos os membros da família e empregados brancos
podem usá-lo.
Eu
seleciono um número de diferenças existentes entre os escravos; eu pego essas
diferenças e as faço ficarem maiores, exagero-as. Então eu uso o medo, a
desconfiança, a inveja, para controlá-los. Eu usei esse método na minha fazenda
e funcionou; não somente lá mas em todo o Sul.
Pegue uma
pequena e simples lista de diferenças e pense sobre elas. Na primeira linha da
minha lista está “Idade” [...]. A segunda linha, coloquei “Cor” ou “Nuances”.
Há ainda, “inteligência”, “tamanho”, “sexo”, “tamanho da plantação”, “status da
plantação”, “atitude do dono”, “se mora no vale ou no morro”, “Leste ou Oeste”,
“norte ou sul”, se tem “cabelo liso ou crespo”, se é “alto ou baixo”.
Agora que
você tem uma lista de diferenças, eu darei umas instruções, mas antes, eu devo
assegurar que a desconfiança é mais forte do que a confiança e que a inveja é
mais forte do que a adulação, o respeito e a admiração.
O escravo
negro, após receber esse doutrinamento ou lavagem cerebral, perpetuará, ele
mesmo, e desenvolverá esses sentimentos, que influenciarão seu comportamento
durante centenas, até milhares de anos, sem que precisemos voltar a intervir. A
sua submissão a nós e à nossa civilização será não somente total, mas
também profunda e durável.
Não se
esqueçam que vocês devem colocar o velho negro contra o jovem negro. E o jovem
negro contra o velho negro. Vocês devem jogar o negro de pele escura contra o
de pele clara. E o de pele clara contra o de pele escura. O homem
negro contra a mulher negra.
É
necessário que os escravos confiem e dependam de NÓS. Eles devem amar,
respeitar e confiar somente em nós.
Senhores,
essas dicas são as chaves para controlá-los, usem-nas. Façam com que as suas
esposas, filhos e empregados brancos também as utilizem. Nunca
percam uma oportunidade.
Meu plano
é garantido e a boa coisa nisso é que se utilizado intensamente durante um ano,
os escravos por eles mesmos acentuarão ainda mais essas oposições e nunca mais
terão confiança em si mesmos, o que garantirá uma dominação quase eterna sobre
eles.
Obrigado,
senhores.
William
Lynch
(Esse discurso foi pronunciado por um escravagista
europeu, William Lynch, em 1712. Ele fora convidado a apresentar uma nova
técnica de controle dos africanos deportados para os Estados Unidos, que se
revoltavam cada dia, criando problemas para os negócios. William Lynch, pela
sua competência e expertise, se
tornou um consultor no assunto.)].
Após
essa leitura dos métodos e técnicas de controle implantado e utilizado por
muitos senhores donos de escravos, expresso que a minha intenção é mostrar que
nesse contexto histórico o reconhecimento da diferença que partia dos senhores
para os negros, estava diretamente ligado a um desejo de subalternização e
inferiorização. Para que assim, jogando uns contra os outros, o domínio fosse
mais fácil.
Já
pararam para se perguntar os porquês de se falarem tanto e se incomodarem tanto
com o Joaquim Barbosa? E dos outros presidentes do STF, falavam o quê? Será que
eles eram intempestivos também? Será que eles eram esnobes e arrogantes? Por
que tais características ganham mais força e atenção quando se referem ao
Joaquim, o primeiro presidente negro?
Quando
relaciono metaforicamente o Joaquim Barbosa com o negro que está dentro da Casa
Grande e que sintetiza na sua figura a luta e os desejos dos negros da Senzala
que não puderam e não tiveram condições históricas para estar lá dentro, quero
destacar que esse negro vai despertar a raiva de muitos senhores por não ter
sido subserviente como eles esperavam que fosse e nem por ter se contentado com
o status de negro da Casa Grande que
só aí já desencadeia um fator que o diferencia dos demais negros da Senzala. O
que ele pode fazer potencialmente a partir da representação enquanto um negro
inserido num cargo de poder dessa magnitude é elevar a voz de um grupo étnico
através da sua postura e com suas ações em busca de justiça e igualdade de direitos.
Claro que a implicância não parte somente dos
senhores, existem os negros que acabam caindo no desejo da brancura, no desejo
do poder, mesmo sem saber; achando eles que estão reproduzindo uma crítica à
figura pública e política sobre esse negro da Casa Grande, mas mal sabem eles
que estão a dar voz e força aos discursos de figuras como o Lynch que visa
desagregá-los para continuar dominando suas mentes por muitos anos.
Fanon
numa passagem do livro “Pele Negra,
Máscaras Brancas” coloca que antes de pensarmos no processo de
conscientização dos não-negros, torna-se primordial buscar a desalienação do
irmão negro. Com o que apresentei nesse texto, com a leitura dos fragmentos da carta
(ou discurso) do Lynch, o que
sobressai se relacionarmos com alguns processos atuais é que sua tese ganhou
espaço entre muitos de nós, mas que felizmente e graças à luta incessante de
muitos do movimento negro em conjunto com intelectuais não-negros e negros,
destacando o próprio Fanon como exemplo, hoje, não só enxergo os avanços, nesse
processo de desalienação, como também os ganhos e conquistas de direitos da
população negra e a sua entrada nos principais espaços de poder deste país.