Objetivos e intenções do Onda Negra.

O Onda Negra surge como um desejo de exteriorização de algumas reflexões que estão diretamente ligadas à questão racial. Almejamos com este espaço a problematização e discussão sobre temas como o racismo, o preconceito racial e a discriminação. Possivelmente, veremos também discussões sobre processos que apontam para uma predominância da desigualdade social e racial no nosso país.

Em alguns momentos, apresentaremos sugestões, análises e reflexões de filmes que abordam diretamente ou indiretamente a temática racial, ou, que dialoguem com a mesma. Salientamos que dentro desta proposta não deixaremos de abordar, por exemplo: a questão de gênero, os processos do mundo do trabalho e a questão racial, a questão da violência racial e, principalmente, alguns processos que envolvam reparação e ganhos para a população negra, como no caso das políticas de Ações Afirmativas.

Por último, explicamos que a origem do nome Onda Negra foi pensado a partir do livro da Celia de Azevedo, "Onda negra, medo branco". Nesse livro, a autora estabelece um intenso debate em torno das "questões senhoriais travadas por abolicionistas e imigrantistas ao longo do século dezenove. Decerto esse debate ainda se arrastaria pelo tempo não fosse a intervenção dos próprios escravos com suas ações autônomas e violentas, aguçando os medos da 'onda negra', imagem vívida forjada no calor da luta por elites racistas."

Sendo assim, julguei pertinente fazer uma alusão a esta "onda negra" que se tratava do medo das elites com os retrospectos das lutas anti-escravistas (ou por libertação dos negros escravizados) como por exemplo, a Revolução Haitiana; para tratar dos problemas contemporâneos que envolvem a condição do negro em nossa sociedade. Enquanto as lutas ganham força por ganhos de direitos, por igualdade de condições no mercado de trabalho em relação aos brancos, por políticas de reparação e de inclusão com as Ações Afirmativas, percebe-se que todo esse movimento ainda desperta em alguns grupos da nossa sociedade um incômodo, uma desconfiança e a meu ver um medo.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Por um 2014 sem racismo!

Hoje, penúltimo dia do ano de 2013, não esperava que tivesse algo para escrever ou relatar. Eis que o danado e o famigerado do racismo deu o ar da graça mais uma vez. Foi lamentável. Compartilharei com vocês...


Numa saída rápida ao centro da cidade de Araraquara, eu e minha companheira decidimos dar uma passada no Shopping Lupo para comprar algumas coisas que precisávamos. Nessa rápida incursão, não pude deixar de pensar nos acontecimentos dos “Rolezinhos” ao observar os olhares dos seguranças para mim, mas segui adiante... Eu e minha companheira decidimos nos separar, para não passarmos muito tempo lá dentro. Traçado nosso objetivo, segui ao banco, foi lá onde tudo aconteceu.


Ao entrar no banco para fazer um saque rapidamente me deparo com uma jovem e uma senhora que começava a fazer sua operação no caixa rápido. Eu olhei rapidamente para ela e fui fazer a minha transação. Como já estou acostumado aos olhares desconfiados de algumas pessoas, não pude me furtar de olhar para ver qual seria a reação delas. Primeiramente a jovem me olhou e já se aproximou da senhora, em seguida, a senhora percebendo a aproximação repentina da jovem olhou para o lado para ver o que se passava. Advinha o que ela viu? Um homem negro, de bermuda e camiseta sem ser de marca, com pequenos furos infelizmente pelo desgaste do tempo e, de dreadlocks. Sei que em boa parte desse país essa não é uma imagem que se espera de um “homem de bem”, como também sei que essa é uma percepção retrógrada. Na realidade, para elas (a jovem e a senhora), eu oferecia perigo.


A senhora rapidamente tirou seu cartão e disse em alto e bom tom “esse terminal sempre dá problema...”. Saiu e foi para outro terminal bem longe de mim. Como gosto de pagar para ver, terminei a minha operação no caixa do banco e fui testar o caixa que ela disse estar com problemas. Adivinhem o que aconteceu meus caros amigos e minhas caras amigas? O caixa eletrônico funcionou perfeitamente. Sem mais delongas e sem adentrar em mais detalhes, fica mais do que evidente o que se passou nessa situação que vivenciei.


Racismo! O imaginário preconceituoso delas alertava: “Tem um negro aqui do lado e ele pode estar nos espreitando para nos assaltar”. Até quando viveremos cenas e situações como estas?


Por isso, decidi deixar este relato como última postagem do ano e, esta mensagem a seguir que, ao mesmo tempo, expressa o meu desejo de que o ano de 2014 seja de mais conquistas para a população negra, aqueles que não se identificam como negros ou que são brancos possam ter mais consciência do que está em pauta nas nossas lutas e reivindicações. Por fim, que tenhamos mais anos novos sem racismo!



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Opiniões preconceituosas de uma “falácia midiática pseudo intelectualizada”


O nome dela é Rachel Shererazade. Essa apresentadora âncora do jornal do SBT ficou conhecida por um vídeo em que tecia uma argumentação calorosa contra a corrupção e os mandos e desmandos da família Sarney no Maranhão. Até aí tudo bem! Quem não se empolgou com uma apresentadora de tele jornal com a coragem de fazer o que ela fez? Mas o pior vem a galope... Doce ilusão acreditar que por ela ser crítica num momento especifico sobre questões da política e da corrupção brasileira, ela, por tabela, teria uma consciência realmente crítica dos fenômenos sociais que vem assolando a grande parcela da população deste país que é pobre, moradores de periferia e negros.

Ela realmente mostrou quem é. Ela nos mostrou que não passa de mais uma “pseudo-crítica” que julga entender de determinados problemas do nosso país, como a questão da segregação espacial, discriminação racial, racismo, desigualdade social, dentre outros assuntos correlatos, mas na verdade ela não passa de uma “falácia midiática pseudo intelectualizada”. Ela demonstrou uma concepção que não é muito diferente da elite racista que acha que lugar de pobre é na periferia mesmo e que ir ao shopping é um direito que não lhes cabe. Concepções de uma elite branca abarrotada de visões estereotipadas, preconceituosas e racistas.


Vejam o vídeo e os absurdos pronunciados por ela:




“Não precisa ser sociólogo para perceber que a molecada que marca esses encontros quer, acima de tudo, reafirmar sua existência. E mesmo alguns tumultos que possam causar têm a ver com isso. É como se gritassem a plenos pulmões: “Ei, eu existo, pô!” Boa parte dos jovens negros e pobres da periferia nascem e morrem diariamente sem que o Estado esboce um bocejo de preocupação ou que o restante da sociedade fique sabendo” - Sakamoto.


Como o Sakamoto bem disse: não precisa ser um cientista social ou sociólogo para perceber a mensagem destes jovens que estão cansados da discriminação e dos olhares ofensivos quando tentam ir sozinhos ou em pequenos grupos nesses “espaços de luxo”. Por que esses jovens não podem fazer estes rolezinhos no shopping? A elite branca e rica tem medo dos arrastões? De assaltos? Esses problemas têm uma origem e têm cor? Eles persistem e não serão com comentários despreparados e preconceituosos, como os dessa apresentadora de tele jornal, que conseguiremos entender a raiz do problema social que estes jovens estão demonstrando para nós.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Ei seu polícia! O espaço é público e eu tenho o direito... – Cala boca marginal.

No artigo de hoje decidi tratar sobre duas questões que me chamaram à atenção nos últimos dias. A primeira diz respeito aos “arrastões” no Rio de Janeiro e a segunda, se refere aos jovens detidos num shopping center em Vitória quando procuravam se proteger de uma investida policial num baile funk. As análises e argumentações terão como ponto de partida as matérias que trataram de tais fatos.



Neste momento, peço que vejam o vídeo que mostra as cenas do arrastão no Rio de Janeiro.

O quê vem na sua cabeça ao ver essas cenas? Com certeza alguns sentimentos de raiva, de revolta, de injustiça e de vulnerabilidade tomarão nossas mentes e corpos. Mas, e se eu perguntar para quem serão direcionados esses sentimentos? Terá cabimento uma pergunta como essa? Quantas vítimas enxergaram no vídeo? Posso dizer que existem várias vítimas ali? Certamente sim. Vejo turistas sendo assaltados e agredidos. Ainda vejo jovens sendo agredidos, mas não assaltados. Vejo desespero e o não medo do perigo, do risco (guardem essas duas palavras que as retomarei depois). Espera um pouco! Esses jovens tem cor. Não se pode fazer uma análise e tentar discutir sem levar em conta a cor daqueles jovens no vídeo. Então, vi vários jovens negros sendo agredidos e agredindo. Alguns tentando roubar e outros tentando ajudar as possíveis vítimas do assalto. Essas vítimas também tem cor. Eram brancas, aparentemente turistas.



Muitos indignados dirão: bando de vagabundos por que não vão procurar um emprego. Ficam querendo roubar. Querem vida fácil. Saem das favelas e vem nos tirar o sossego aqui na “nossa praia”. Opa! Mas a praia não é um espaço público? Como pode ser de uma minoria que é identificada como a elite carioca? Ao ler a matéria sobre “Praia democrática é mito” consegui entender o que já vinha pensando. Esse espaço não é democrático e não é público, pelo menos na prática. Pode até ser no discurso, mas, no dia a dia, eles são segregados. Não vejo palavra melhor que expresse essa divisão entre espaço de ricos e pobres, de brancos e negros.

Calma pessoal. Não estou querendo criar e nem ver como apartheid (como visto na África do Sul) ou como segregação racial (como foi nos Estados Unidos) esses conflitos no Rio de Janeiro. Entretanto, uma coisa é certa.  Não dá para vermos imagens como essas do vídeo, essas fotos e acharmos que isso é só um problema de falta de vontade para procurar emprego ou trabalho, ou uma bandidagem pura e simples. Sabemos muito bem que muitos desses jovens negros são discriminados em muitas etapas da sua vida.

Não quero justificar como algo positivo ou plausível os arrastões. E nem por na conta dos condicionantes históricos, que sempre imputou para o negro uma situação de marginalização no amplo sentido, a culpa por todos esses problemas. Dito isso, eu só quero que entendamos que o fato de um jovem negro sair da sua casa, na favela que fica na zona norte, para tentar assaltar turistas (brancos) nas praias da zona sul do Rio de Janeiro, tem muito a nos dizer. Não é uma simples coincidência de percurso ou trajeto. Existe algo que está para além do simbólico e que é real.

Há uma insistente desigualdade social e racial que dilacera a vida desses jovens negros. Não sou capaz de discorrer e nem quero fazer generalizações sobre suas motivações. Suas ações podem ser conscientes ou inconscientes. Mas que elas nos dizem muitas coisas, isso dizem. Geralmente os assaltantes premeditam, escolhem a melhor hora para o assalto para correr o risco de ser preso. Mas o que fazem estes jovens se lançarem na praia para tentar roubar correndo o risco de serem espancados e presos? Que falta de medo é esta ou, melhor dizendo, excesso de coragem que os tomam e os fazem agir com tanta indignação ou quem sabe até revolta? Creio que podemos também pensar nessa palavra revolta.





Vejam alguns trechos que julgo interessantes e que foram apresentados na matéria que citei logo acima.


No mundo inteiro, diziam que quem era civilizado ia à praia, que era elegante ir à praia. Chamo essa campanha na minha tese de “projeto praiano-civilizatório”, em que a praia deveria ser ocupada, sim, mas dentro de um modelo de “elegância e civilização”, como eles diziam. Essa campanha começa a surtir efeito a partir da década de 1920. As praias começam a encher, e isso acompanha o boom demográfico de Copacabana, a partir da década de 1940, quando o bairro começou a ser associado à nova elite do Rio. Esse primeiro momento de ocupação da praia, portanto, não é democrático. A praia era um espaço exclusivo das elites. Nem ônibus entrava ali ainda. (Grifo feito por mim)

[...] E agora todos tinham de lidar com as praias lotadas de trabalhadores. De tanto alardear a campanha, o desejo de ter acesso ao mundo elegante à beira-mar passa também a ser a vontade de diferentes camadas sociais. E aí, no início da década de 1930, começam a aparecer textos muitíssimo inflamados nos jornais reclamando dessa suposta “invasão”.

É no início da década de 1930 que a elite começa a recobrar a tal “exclusividade”?

Sim. Começam a se referir às pessoas até como “animais”. (Lê um trecho do jornal “Beira-Mar”, de 1929, que usa em sua pesquisa: “esse referver de criaturas, bem ou mal vestidas, limpas ou sujas, de todas as cores ou nacionalidades afeia os balneários, que se assemelham a praias habitadas de focas, não a praias vaidosamente chamadas de elegantes”, ou: “Não somos dos que entendem fazer de Copacabana um lugar exclusivo dos ricos e dos estetas, o que defendemos é a ordem e a beleza social das nossas praias. Sejamos progressistas, mas separando o joio do trigo”).


O conceito de praia democrática, então, é um mito?

Sim. É um mito. Um exemplo é a chegada do metrô ao Arpoador, que provocou aquela chiadeira da população, dizendo que ia virar “lugar de favelado”. E isso gerou, de fato, um deslocamento: há uma população segmentada na praia que é majoritariamente negra. O que no nosso país quer dizer majoritariamente pobre, por nossas peculiaridades históricas. Não existe a mistura. Se um grupo de meninos negros chega ao Posto 10 e começa a fazer uma festa, no dia seguinte as pessoas vão se mudar para o Posto 11. É fato.



Depois dessas passagens, vocês conseguem entender que foi construído um ideário, um discurso, ou até mesmo, uma prática que ainda tenta impedir que os jovens negros, pobres e favelados frequentem determinados locais.

A partir deste momento, que estamos falando de determinados locais, como podemos relacionar este fato que aconteceu no Rio de Janeiro com o fato que ocorreu em Vitória, com jovens negros detidos no shopping center?



Montagem feita pelo autor do blog. Qualquer semelhança não é mera coincidência. 


Antes lançarei algumas informações sobre o que se conhece hoje como a “indústria dos Shoppings Centers”.

“O segmento de shopping centers ocupa hoje papel relevante no comércio de varejo no Brasil. Desde a inauguração da primeira unidade (em 1966), o setor registra crescimento de cerca de 100% a cada quinquênio. Tal expansão ocorre mesmo em períodos de desaceleração da atividade econômica do país, o que indica que os shoppings centers estão, em muitos casos, substituindo o comércio de rua.” (trecho retirado da minha dissertação de mestrado).

Para a Associação Brasileira de Shoppings Centers (ABRASCE): “A indústria de Shopping Centers do Brasil fechou o ano de 2010 com um faturamento de R$ 87 bilhões, ante os R$ 74 bilhões de 2009, um aumento de 17,5% no período, segundo dados da Associação Brasileira de Shopping Centers - Abrasce. No ano passado foram inaugurados 16 empreendimentos, que, com os dez já inaugurados em 2011, somam 418 centros de compras desse tipo no Brasil.”.

Ao pensar no caso do shopping de Vitória, vocês conseguem perceber onde estes garotos foram tentar se proteger? Em que espaço, erroneamente pensado como público, eles foram buscar proteção? Essa indústria certamente está nas mãos de uma seleta minoria e nem preciso dizer qual a cor dessa minoria. Sendo assim, que paralelo podemos estabelecer com estes dois fatos que ocorreram?

Jovens negros, pobres, moradores de favelas e periferias, “mal vestidos” ou não vestidos como o ambiente lhes impõem, com o sentimento de que são indesejados e, consequentemente, sendo vistos como marginais e/ou criminosos. Quem dá o direito a essa minoria e ao imaginário social de associar glamour, luxo e poder aquisitivo com brancura (no sentido de qualidade de branco)? E se pensarmos o contrário de tudo isso, quem tem o direito de associar com negrura (no sentido de qualidade de negro)?

Cabe fazer uma ressalva ao estilo de preconceito identificado no nosso país relembrando o grande estudioso Oracy Nogueira, que bem fundamentado, nomeou o preconceito presente no Brasil como “Preconceito de Marca”. Com essa denominação feita por ele, não tenho dúvidas de que ela se encaixa perfeitamente com os fatos que presenciamos ultimamente. Entenderam? Shopping, Praia, Glamour, Elite, Luxo, Branco, Negro, Pobreza, Preconceito e Marca.

Para finalizar, existe ou sempre existiu a tentativa de expurgar a pobreza de certos espaços visto como de elite. Não é por acaso que ainda encontramos pessoas que nos dizem: e você vai sair assim para ir ao shopping é? Com esta roupa surrada e este chinelo? O nosso inconsciente está impregnado de informações que reforçam a noção de que determinado local, ou, o shopping é um espaço de poder, de luxo e, como tal, temos que nos fazer “apresentável”. Quando não nos fazemos “apresentável” o que acontece? Direi a vocês: seguranças andando atrás da gente pelo shopping, atendentes de lojas nos desprezando por nos julgar incapazes de termos condições financeiras para comprar algum produto da sua loja, segurança de supermercado duvidando se o carro no estacionamento é mesmo nosso, e tantas outras situações que passaria o resto do dia aqui descrevendo.

O que é “apresentável”? É parecer rico? É ser branco ou parecer branco? Ah! Já sei. É não parecer marginal? Mas e como é parecer marginal? Ei! Mas mesmo que me “vista bem” ainda sou parado pela polícia e recebo em muitas das vezes seus olhares interrogadores. Será que o problema está no estereotipo ou na minha cor? Ou é uma questão de problema macro estrutural?


Eu tenho minhas conclusões. E vocês?

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A questão dos negros e o mercado de trabalho – um viver em sobressalto.




Hoje, dia 20 de novembro de 2013, é um dia muito especial para todos os negros e todas as negras deste país. Comemora-se nessa data o dia da Consciência Negra. É muito bonito e satisfatório vermos várias postagens nas redes sociais que exaltam o valor, a cultura e a importância desse povo negro. Mas para mim ainda faltava algo. Como eu gosto de refletir sobre questões que envolvem a nossa atualidade e que estão diretamente ligadas à população negra, decidi escrever sobre um tema que é muito caro para mim e para todos os negros e todas as negras deste nosso Brasil que é a questão do negro e o mercado de trabalho. Dito isso, informo a vocês que essa é a minha maneira de homenagear não só este dia, mas todos os dias da consciência negra.

Não precisarei apresentar muitas informações que expressem o quanto o negro foi importante para construção do nosso país. Sabemos muito bem que foi a condição de escravizado, com o uso da violência física e psíquica que potencializou a riqueza de muitos senhores brancos e de muitas instituições nesse país. 

Quando me refiro ao Negro no decorrer deste texto e das análises, estou não só enxergando-o como um sujeito dentro de um grupo étnico, mas compreendendo-o como uma categoria sociológica analítica que terá embutida na sua denominação tanto as dimensões de gênero (negros e negras) quanto as de identificações (pardos e pretos) utilizadas por grandes institutos de pesquisa como o IBGE.

Sendo assim, o que eu quero dizer e refletir com o uso dessa expressão “um viver em sobressalto”? De acordo com o dicionário Aurélio, temos as seguintes explicações para a palavra sobressalto: estremecimento súbito e involuntário, medo, temor, acontecimento inesperado e imprevisto. Fico com essas explicações, pois, creio que elas me ajudarão na externalização do meu objetivo com este texto.

Dito isso, como deve ser para um sujeito viver a sua vida com um intenso sentimento de temor, à espera de qualquer acontecimento inesperado que pode legar a ele situações de desprazer, violência, sofrimento e até morte? Com certeza, viver dessa forma é um absurdo. Por muitos anos da história do nosso país, os negros viveram com este sentimento. Mesmo sob estas condições, mesmo vivendo em sobressalto, muitos não se resignaram ao contexto que os inferiorizavam e os violentavam. Lutaram por mudanças e melhorias até o fim das suas vidas.



E o trabalho? Como entra o trabalho nesta história? Ele não entra. Ele é a própria história. O Africano foi capturado e trazido à força, involuntariamente, para ser usado como mão de obra para o trabalho escravo. Visto como uma mercadoria, um animal (um não humano) que precisava ser domesticado e condicionado aos disciplinamentos da colônia.

Quando converso com alguns amigos e amigas sobre a situação que os negros viveram nesse período, eu costumo dar o seguinte exemplo: imagine você na sua casa, ou andando na sua rua calmamente, quando você menos espera alguns homens capturam você. Consegue imaginar o susto e o medo? Nesse momento você esbraveja, resiste e luta do jeito que pode para não ir com eles. Você nem tem ideia para onde estão te levando. Não tem jeito. Eles são muitos. Você com todo o seu conhecimento tenta imaginar o que pode acontecer com você e do que se trata. Mas aí, você percebe que eles não estão te tratando como um ser igual a eles. Eles te tratam de uma forma pior. Quando você pensa que não poderia piorar eis o que vem pela frente, eles vão te transformar em uma propriedade. É isso mesmo, uma propriedade. Já se imaginou? Você no auge da sua individualidade e independência tendo que se tornar propriedade de alguém? Sabe como eles conseguiram isso? Violentando o seu corpo e sua mente. Até você não poder mais lutar contra toda a estrutura que lhe subjuga e aprisiona. É claro que muitos na mesma situação se mataram. Preferiram morrer a viver em tal condição. Outros criaram outras formas de resistência para superar essa realidade. Mas no fim, você foi transformado num escravo ou numa escrava.

Esse exemplo que uso foi pensado ao ler o capitulo “A propriedade”, no livro Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a Revolução de São Domingos. Nesse capitulo você encontrará os relatos das mais diversas crueldades feitas com os negros para que pudessem torná-los propriedade. Ou seja, usando da violência para destituir a sua humanidade e subjetividade tornando-os seres inferiores, escravizados.

Vamos avançar um pouco, visto que já sabemos como se deu o contexto da escravidão e, consequentemente, os seus desdobramentos para a construção do imaginário social do nosso país. Quero falar para vocês sobre um termo ou categoria que é a do Negro de Ganho. Com a abolição, e até um pouco antes, muitos negros já trabalhavam fora das fazendas, nos centros urbanos das grandes cidades. Muitos senhores e senhoras donas de escravos utilizavam essa modalidade de trabalho na época como mais uma forma de obter lucros.



Vejam o trecho do filme “Quanto vale ou é por quilo” – com a direção de Sergio Bianchi, que trata da história de amizade entre Maria Antônia e Lucrécia. Esse trecho além de contar com a bela narração do Milton Gonçalves, nos exemplifica de forma genial o que era o Negro de Ganho. 




Essa modalidade foi muito usada na transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Livre entre aspas. Pois, por mais que alguns escravos não precisassem dormir nas senzalas, eles ainda continuavam acorrentados aos grilhões da escravidão, à condição de negro com toda a representação negativa que essa condição lhe imputava. É fato, também, que muitos negros conseguiram se articular mais e melhor a partir dessa condição de trabalho.

Ao pensar sobre essa condição e ao ver o trecho do vídeo, o que podemos refletir sobre as atuais condições que os negros têm que enfrentar no mercado de trabalho hoje em dia? Não devemos ficar preso ao passado pura e simplesmente. Mas é justamente a compreensão desse passado que pode nos abrir possibilidades de entender determinadas condições do nosso presente.



Portanto, acredito que muitos dos problemas enfrentados no passado ganham uma nova configuração na atualidade, tornando-se necessário uma compreensão de forma mais aprofundada sobre estes problemas que se replicam e se mantém firmes nos dias de hoje. É fato que os principais problemas que os negros têm enfrentado se referem à desigualdade sócio-econômica, à discriminação racial e ao processo de marginalização que perduram em amplos setores da nossa sociedade (na escola, no convívio social, na relação com a justiça e principalmente no trabalho).

Citando alguns exemplos, o negro ainda recebe menos em amplos setores do mercado de trabalho; no serviço de empregada doméstica, o que se observa como predominante é a presença das mulheres negras; e por último, na questão da violência, os jovens negros são os que mais morrem no país.

Se a desigualdade torna-se tão evidente quando colocamos no centro da análise a questão racial, mesmo sabendo que o Brasil é visto como o país da miscigenação e da democracia racial, como se explica a identificação, na atualidade, de uma desigualdade salarial entre brancos e negros com o mesmo cargo de trabalho e com o mesmo grau de escolaridade? E se destacarmos o gênero, a mulher negra assume os trabalhos mais desvalorizados e precários recebendo as piores remunerações. Com tudo isso, de onde surge essa condição que marginaliza o negro na sociedade atual? Como ela se retroalimenta e vem perpassando o imaginário social até ser expelida em práticas discriminatórias e/ou racistas tanto no mercado de trabalho (que nesse momento é o meu foco) quanto na sociedade em toda sua amplitude?

Conseguem perceber que em toda a trajetória do negro neste país há “um viver em sobressalto”? Se vamos procurar um emprego tememos as atitudes racistas que podem surgir. Ao andarmos nas ruas, salvo as raríssimas exceções, somos confundidos com assaltantes. Quem se lembra dos crimes de vadiagem? Quem que eram os alvos? Será que eram os negros? Com certeza eram os nossos antepassados. Até pouco tempo, nas décadas de 70 e 80, os negros tinham que andar com a carteira de trabalho para provar que não eram marginais e sim, trabalhadores. E guardada as devidas proporções muita coisa não mudou atualmente. Observamos negros tendo que mostrar suas carteirinhas de universitários para se livrar das investidas policiais. E os que ainda não estão nas universidades? Como se livram? Será este o único caminho para sermos respeitados e não mais violentados, assassinados nesta e por esta sociedade?

O que observamos hoje ao olhar para o setor privado? Estamos discutindo a possibilidade de ações afirmativas em concursos públicos e sou favorável a tal proposta. Mas fico a me perguntar: como ficará o setor privado? Quem o regulará na expectativa de evitar os crimes de racismo que se travestem de outras formas de violência e exploração contra o trabalhador negro? Sonhar com uma regulação mais forte que combata as formas de preconceito e racismo é uma utopia?

Hoje continuamos observando os negros em trabalhos precários, em situações degradantes e de alta exploração, vemos também formas atualizadas de trabalho escravo, vários Amarildos e Douglas sendo assassinados nas periferias, vários negros sendo discriminados nos seus trabalhos e sem poder combater essa discriminação, pois existe o medo de entrar nas estatísticas do desemprego. 

Finalizo lançando uma última pergunta. Quando e como poderemos ter uma sociedade em que nós negros não tenhamos mais que viver em sobressalto?


 (Algumas fotos são do Sebastião Salgado e outras do Google imagens)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Até onde vai esse humor inteligentemente idiotizado, racista e preconceituoso da Globo?



No decorrer da tarde de hoje me deparei nas redes sociais com criticas ao programa Fantástico, da Rede Globo, especificamente, ao quadro humorístico “O Baú do Baú do Fantástico” que exibiu um episódio (em tom sarcástico) sobre o dia 13 de maio de 1988, dia esse, caríssimo para nós negros deste país. Dito isso, não conseguiria ficar sem expressar alguns pensamentos e reflexões indignadas sobre esse racismo que vem sendo protagonizado por esta emissora de TV, se não nos últimos meses, que seja nos últimos anos, ou quem sabe, talvez, desde sempre.

Fiquei observando algumas postagens sobre o que aconteceu e confesso que simpatizei muito com as críticas do Negro Belchior e a forma como ele discutiu e abordou o acontecido. Só não fiquei contente por ver alguns comentários sobre o seu texto, “Rede Globo, fantástico é o seu racismo!”, que discutiam qual a verdadeira forma de se combater tais atitudes racistas. Obviamente, desqualificando o uso das redes sociais, por um aparente cansaço, por já saberem de “tudo” que já está sendo dito e etc., e enfatizando que a práxis transformadora seria a mais importante e o único meio de se mudar essa realidade. Afirmo, contundentemente, que estou de acordo que a práxis pode sim mudar a nossa realidade. Mas desde que entendamos que sem uma ação que perpasse estes meios de comunicação, que instigue a mobilização e, principalmente o conhecimento, essa busca por transformação fica mais difícil.

Não temos que nos fragmentar e nem nos alfinetarmos nos criticando sobre qual é a melhor forma de agir sobre este caso, mas sim nos unirmos e usarmos estes meios e ações para atingirmos o objetivo maior que, a meu ver, é o fim do preconceito racial, do intenso bombardeio inferiorizador/estigmatizador sobre nós negros, que são intentados por esta imprensa elitista, “global” e racista. Não podemos perder o foco da luta anti-racista.

Tenha certeza que já estamos cansados dessa discriminação e dessa TV esteriotipadora, homofóbica, racista e machista.  Então, o que temos que pensar e o que temos que fazer? Fiquei a pensar e cheguei algumas evidências: pegando o caso da rede globo de televisão, é fato que esta empresa expressa a sua atitude racista constantemente. Seja ela nos jornais, com nenhum apresentador fixo que seja negro, nas novelas com o caso do garoto negro que querem cortar o seu lindo cabelo Black, fora as outras dimensões que bem sabemos – como expõem a mulher negra, os trabalhadores negros e etc.; por último, vem os programas de “humor” como o Zorra Total (veja esta crítica feita aos personagens). Que em minha opinião, as duas personagens negras, só expressam uma afronta proposital. E nem adianta me convencer que aquilo é arte.

Com tudo isso, só me resta algumas perguntas: como que os atores negros lidam no dia a dia de trabalho ou gravações? Será que o salário, ou a oportunidade de “figurar” na TV vale mais do que o respeito à condição e à memória histórica de um povo? Não quero jogar a responsabilidade só para os atores, as atrizes, os/as figurantes negros/as que se submetem a determinados trabalhos.

Fico a pensar no papel relevante que teve para a comunidade negra o Teatro Experimental do Negro idealizado por Abdias Nascimento. A sua importância no cenário político, social e até da arte não se contesta. Não quero ser injusto com os atores negros que tem uma postura crítica e política bem definida. Só sei que precisamos fazer mais... Como que os atores negros da rede globo lidam com estas atitudes racistas do seu empregador?

Fico a sonhar com o dia em que todos os atores negros e as atrizes negras se neguem a trabalhar em papeis que reforçam a inferiorização, a violência racial e o preconceito que sempre nos foi imposto e que há muitos anos estamos lutando contra. O que aconteceria? Como seriam os desdobramentos nacionais e internacionais sobre tal fenômeno? Vocês conseguem imaginar nos desdobramentos que tal atitude poderia causar para a emissora que mais exporta novela na atualidade brasileira?

Voltando ao caso do Fantástico, o quadro (assista ao vídeo) descaradamente vai demarcar quem são os usuários das políticas do governo hoje em dia. Quando se referem às políticas que poderiam ajudar os ex-escravos, eles demonstram o tamanho do preconceito e da visão deturpadora que só retroalimenta a visão de muitos preconceituosos na atualidade. “Os ex-escravos serão amparados pelo governo com programas como o “Bolsa Família Afrodescendente”, o “Bolsa Escola – o Senzalão da Educação” e com Palhoças Populares do programa “Minha Palhoça, minha vida”. Percebem que todos se referem aos negros: o negro-pobre, o negro sem educação e o negro sem moradia. Tudo isso tem cor.

Podemos dizer que estamos diante de uma prática de incentivo ao racismo e/ou ao preconceito racial. Como muitos já propagam por aí, somos nós os culpados pela situação e determinadas mazelas do país. Só esquecem que foram estes braços negros que construíram este país, sem receber se quer o reconhecimento de tal feito. Não dá mais para vermos e convivermos com tais situações. Recorrer à justiça se torna um dever. Pensarmos maneiras incisivas de combater a postura desta rede de televisão assume um caráter de urgência.

Como o Belchior bem colocou, por que eles não usam nas suas piadas, ou no seu humor inteligentemente idiotizado, racista e preconceituoso, cenas que se relacionem ao holocausto, ou “às vítimas de Hiroshima e Nagasaki; Ou às vítimas do Word Trade Center ou – para ficar no Brasil – às vítimas do incêndio na Boate Kiss” nas noites de domingo?

Acredito que não podemos deixar que nossas demandas individuais desrespeitem e solapem o passado dos nossos ancestrais e, principalmente, a memória da população negra que muito teve que lutar por liberdade, respeito e direitos.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Pesquisa revela o cotidiano da infância de crianças negras no pós-abolição dos escravos.

Como estas fotos nos dizem tantas coisas. A criança negra invisibilizada mesmo estando na foto. As outras bem vestidas e calçadas e ela, a criança negra, com os pés nos chão. E ainda tem gente que se coloca contra a luta pela igualdade e equidade racial. 
               

Sobre a Foto - Nome: Sem Título
Descrição:
Autor: desconhecido
Título: s.t.
Local: Fazenda do Pinhal – São Carlos
Data: s.d.
Procedência: Acervo Fazenda do Pinhal
Coletado por: Anete Abramowicz



[Foto evidencia que há uma menina negra, provavelmente filha de escravizados da fazenda, com vestimentas claramente distintas das mulheres do barco. A menina está com os pés descalços denotando uma marca da escravidão e da pobreza. O outro momento desta imagem refere-se às letras encontradas acima de cada mulher retratada. A única que não possuía uma letra acima de sua imagem é a menina. Este fato mostra que ela não foi identificada por quem olhou a foto. Esta foto explicita, de certa forma, esta menina não é visível da mesma maneira que as mulheres e também não está oculta (texto da pesquisadora)]



As crianças negras e pobres, principalmente, foram e continuam sendo invisíveis e emudecidas no Brasil. Esta é uma das conclusões de um trabalho baseado em imagense fotografias da criança e de sua infância no século XIX e início do XX, período marcado pela abolição de escravidão negra na sociedade brasileira e a passagem do regime monárquico para a República.

Coordenada pela professora Anete Abramowicz, da Universidade Federal de São Carlose bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, a Pesquisa Representações da Criança e da Infância na iconografia brasileira dos anos 1880-1940 teve o objetivo de retratar comoas crianças foram registradas neste período e reconhecer a fonte iconográfica como um documento legítimo para a construção da história da criança.

Para a pesquisadora, a sociedade brasileira é “adultocêntrica e não há espaço social para as crianças cujas falas não são consideradas como legítimas na ordem discursiva hegemônica”. “Uma das conclusões que chegamos é sobre a invisibilidade das crianças neste período e encontramos também crianças negras em retratos que contemplam cenas da vida cotidiana sem alusão a escravidão e que de certa forma ‘faz fugir’ uma determinada iconografia dominante neste período, marcada pelo pitoresco e exótico da escravidão e pela invisibilidade das crianças na vida social”, afirma a professora Anete Abramowicz.

Na pesquisa, foram utilizados imagens e fotos dos acervos escolares e de museus históricos localizados em São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Bahia, Rio de Janeiro, Paris e Portugal. “Não há no Brasil e também internacionalmente, um trabalho nesta clivagem: crianças e negras representadas. Foi um trabalho que continua até hoje, pois as imagens são bem raras”, ressalta a pesquisadora.



Outra foto que mexeu muito comigo foi esta aqui: 


Nome: Sem Título
Descrição:
Autor: Militão Augusto de Azevedo
Título: s. t.
Local: s. l.
Data: s. d. (entre 1865 e 1885)
Procedência: Museu Paulista da USP
Coletado por: Ione Jovino


A expressividade do olhar desta criança. O que ela deveria estar pensando e achando do momento que vivia, da situação que se encontrava e, principalmente, quando olhava para as outras crianças brancas observando o quanto eram diferentes em todas as condições. Esta expressão não sairá mais da minha mente. Esta expressão certamente continuará me empurrando para que continue firme na luta anti-racista, por uma igualdade e equidade racial neste país. Seja ela nas ruas, no blog, nas instituições públicas e privadas, onde quer que seja. Não posso e não podemos esmorecer. (Escrito pelo autor do Blog)


Confira a entrevista da pesquisadora


Popciência - Quais os motivos a levaram a estudar a representação da criança eda infância brasileira por meio da iconografia?


Em 1960, o historiador Phillipe Ariès escreveu um livro que foi traduzido para o Brasil posteriormente, com o nome História Social da Criança e da Família, e que se tornou uma espécie de marco zero de uma concepção social da criança e da infância. Nesta obra, ele constrói um conceito denominado “sentimento da infância”, que significa o nascimento da particularidade da criança em relação ao adulto, e um sentimento moderno em relação à criança. Este conceito, mesmo tendo recebido inúmeras críticas, pretendeu configurar a história social da criança e da infância, de maneira inédita na historiografia. A metodologia utilizada por Ariès foi a iconografia. Ele mostrou quando e de que maneira as crianças, em especial as crianças filhos dos nobres e as das classes burguesas, aparecem representadas nos quadros dos pintores. Novamente, há muitas críticas metodológicas também a este trabalho. De toda a maneira, resolvemos tomar a iconografia como uma metodologia válida muito eficaz e fomos buscar, a partir de um recorte teórico central raça, imagens de crianças negras no período proposto. Não há no Brasil e também internacionalmente, um trabalho nesta clivagem: crianças e negras representadas. Foi um trabalho que continua até hoje, pois as imagens são bem raras.


Popciência - Por que foi escolhido o recorte nos anos 1880 a 1940 para pesquisa?


Ao propormos um trabalho iconográfico da criança e de sua infância no Século XIX e início do XX, pretendíamos, por um lado, deixar um registro de crianças que raramente foram retratadas especialmente neste período. Por outro lado, reconhecer a fonte iconográfica como um documento legítimo na invenção e contribuição para a construção da história da criança nesse período. As crianças ocupam um lugar aparentemente periférico na história em geral e isso se reflete na dificuldade em encontrar imagens delas e sobre elas. Ao mesmo tempo em que não são elas que escrevem sua própria história e nem são elas que registram suas imagens, as crianças têm sua história contada e retratada por outros. Num primeiro momento da historiografia da escravidão brasileira, as interpretações economicistas obscureceram o conhecimento mais apurado das relações entre os próprios escravizados, assim como destes com os libertos e os brancos pobres. Salvo raríssimas exceções, conforme Jovino (2010), não houve silêncio nem invisibilidade maior do que aquela que incidiu sobre as mulheres e as crianças escravizadas. Corrobora isso um dos trechos do pioneiro trabalho de Mattoso (MATTOSO, Katia Queirós. O filho da escrava. Em torno da Lei do Ventre Livre. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 37- 55, mar./ago. 1988 p. 38), ao comentar a dificuldade do trabalho com as fontes (no caso inventários post mortem), que não deixam transparecer os aspectos da vida cotidiana, alegando haver um anonimato redutor na escravidão: “o que se pode dizer então das crianças escravas que são duplamente mudas, e duplamente escravas?” Na realidade, quisemos retratar vidas infames que, como diz Walter Benjamin, vidas que não deixam rastros. Esta é na nossa visão sobre o que tem de mais importante nas pesquisas nas áreas das ciências humanas: captar vidas e pontos de vistas que escapam de uma certa historiografia, no sentido de contar a historia da perspectiva dos invisibilizados, dos infames, daqueles cujas vozes não ressoam.


Popciência - Quais foram os acervos iconográficos pesquisados?


Museu e biblioteca da Fazenda do Pinhal (MFP), no município de São Carlos/SP; Instituto Moreira Salles (IMS) e Museu Paulista (MP); no município de São Paulo; Museu Histórico do Município de Dourados/MS(MHMD) e Centro de Documentação Regional (CDR) localizado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD); Biblioteca Pública do Estado da Bahia; Arquivo Público da Bahia (APB); Museu Regional de Vitória da Conquista (MRVC), órgão suplementar da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e no acervo particular do Sr. Dílson Alves dos Santos em Vitória da Conquista. Em Paris, a Biblioteca Richelieu-Louvois, e, em Portugal, o Museu da Imagem de Braga.

Saiba mais:

ABRAMOWICZ, A.; SILVEIRA, Debora de Barros; Jovino, Ione ; Simião, Lucélio Ferreira. Imagens de crianças e infâncias: a criança na iconografia brasileira dos séculos XIX e XX - doi: 10.5007/2175-795X.2011v29n1p263. Perspectiva, v. 29, p. 263-293, 2011.

ABRAMOWICZ, A.; RODRIGUES, T. C.; JOVINO, I. S. ; OLIVEIRA, F. DE. Representations of children and childhood in Brazilian Iconography. In: 21st annual conference EECERA, 2011, Genebra. Education from birth: Research, Practices and Educational Policy. Genebra: European Early Childhood Education Research Association, 2011. v. 1. p. 1-405.

ABRAMOWICZ, A.; RODRIGUES, T. C.. Imagens de crianças e infâncias: a criança da iconografia brasileira do séculos XIX e XX:. In: LASA Rethinking Inequalities, 2009, Rio de Janeiro. LASA Rethinking Inequalities, 2009. v. 1. p. 1-15.

Ione da Silva Jovino. Crianças Negras em Imagens do Século XIX. 2010. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de São Carlos, Orientador: Anete Abramowicz.