No artigo de hoje
decidi tratar sobre duas questões que me chamaram à atenção nos últimos dias. A
primeira diz respeito aos “arrastões” no Rio de Janeiro e a segunda, se refere
aos jovens detidos num shopping center
em Vitória quando procuravam se proteger de uma investida policial num baile
funk. As análises e argumentações terão como ponto de partida as matérias que
trataram de tais fatos.
Neste momento, peço que
vejam o vídeo que mostra as cenas do arrastão no Rio de Janeiro.
O quê vem na sua cabeça
ao ver essas cenas? Com certeza alguns sentimentos de raiva, de revolta, de
injustiça e de vulnerabilidade tomarão nossas mentes e corpos. Mas, e se eu
perguntar para quem serão direcionados esses sentimentos? Terá cabimento uma
pergunta como essa? Quantas vítimas enxergaram no vídeo? Posso dizer que
existem várias vítimas ali? Certamente sim. Vejo turistas sendo assaltados e
agredidos. Ainda vejo jovens sendo agredidos, mas não assaltados. Vejo
desespero e o não medo do perigo, do risco (guardem essas duas palavras que as
retomarei depois). Espera um pouco! Esses jovens tem cor. Não se pode fazer uma
análise e tentar discutir sem levar em conta a cor daqueles jovens no vídeo.
Então, vi vários jovens negros sendo agredidos e agredindo. Alguns tentando
roubar e outros tentando ajudar as possíveis vítimas do assalto. Essas vítimas
também tem cor. Eram brancas, aparentemente turistas.
Muitos indignados
dirão: bando de vagabundos por que não vão procurar um emprego. Ficam querendo
roubar. Querem vida fácil. Saem das favelas e vem nos tirar o sossego aqui na
“nossa praia”. Opa! Mas a praia não é um espaço público? Como pode ser de uma
minoria que é identificada como a elite carioca? Ao ler a matéria sobre “Praia democrática é mito” consegui entender o que já vinha pensando. Esse espaço não é democrático e não
é público, pelo menos na prática. Pode até ser no discurso, mas, no dia a dia,
eles são segregados. Não vejo palavra melhor que expresse essa divisão entre
espaço de ricos e pobres, de brancos e negros.
Calma pessoal. Não
estou querendo criar e nem ver como apartheid (como visto na África do Sul) ou
como segregação racial (como foi nos Estados Unidos) esses conflitos no Rio de
Janeiro. Entretanto, uma coisa é certa.
Não dá para vermos imagens como essas do vídeo, essas fotos e acharmos
que isso é só um problema de falta de vontade para procurar emprego ou
trabalho, ou uma bandidagem pura e simples. Sabemos muito bem que muitos desses
jovens negros são discriminados em muitas etapas da sua vida.
Não quero justificar
como algo positivo ou plausível os arrastões. E nem por na conta dos
condicionantes históricos, que sempre imputou para o negro uma situação de
marginalização no amplo sentido, a culpa por todos esses problemas. Dito isso,
eu só quero que entendamos que o fato de um jovem negro sair da sua casa, na
favela que fica na zona norte, para tentar assaltar turistas (brancos) nas
praias da zona sul do Rio de Janeiro, tem muito a nos dizer. Não é uma simples
coincidência de percurso ou trajeto. Existe algo que está para além do
simbólico e que é real.
Há uma insistente
desigualdade social e racial que dilacera a vida desses jovens negros. Não sou
capaz de discorrer e nem quero fazer generalizações sobre suas motivações. Suas
ações podem ser conscientes ou inconscientes. Mas que elas nos dizem muitas
coisas, isso dizem. Geralmente os assaltantes premeditam, escolhem a melhor
hora para o assalto para correr o risco de ser preso. Mas o que
fazem estes jovens se lançarem na praia para tentar roubar correndo o risco de
serem espancados e presos? Que falta de medo é esta ou, melhor dizendo, excesso de coragem que os
tomam e os fazem agir com tanta indignação ou quem sabe até revolta? Creio que
podemos também pensar nessa palavra revolta.
Vejam alguns trechos
que julgo interessantes e que foram apresentados na matéria que
citei logo acima.
No
mundo inteiro, diziam que quem era civilizado ia à praia, que era elegante ir à
praia. Chamo essa campanha na minha tese de “projeto praiano-civilizatório”, em
que a praia deveria ser ocupada, sim, mas dentro de um modelo de “elegância e
civilização”, como eles diziam. Essa campanha começa a surtir efeito a partir
da década de 1920. As praias começam a encher, e isso acompanha o boom
demográfico de Copacabana, a partir da década de 1940, quando o bairro começou
a ser associado à nova elite do Rio. Esse primeiro momento de ocupação da
praia, portanto, não é democrático. A
praia era um espaço exclusivo das elites. Nem ônibus entrava ali ainda.
(Grifo feito por mim)
[...]
E agora todos tinham de lidar com as praias lotadas de trabalhadores. De tanto
alardear a campanha, o desejo de ter acesso ao mundo elegante à beira-mar passa
também a ser a vontade de diferentes camadas sociais. E aí, no início da década de 1930, começam a
aparecer textos muitíssimo inflamados nos jornais reclamando dessa suposta
“invasão”.
É
no início da década de 1930 que a elite começa a recobrar a tal
“exclusividade”?
Sim.
Começam a se referir às pessoas até como
“animais”. (Lê um trecho do jornal “Beira-Mar”, de 1929, que usa em sua
pesquisa: “esse referver de criaturas,
bem ou mal vestidas, limpas ou sujas, de todas as cores ou nacionalidades afeia
os balneários, que se assemelham a praias habitadas de focas, não a praias
vaidosamente chamadas de elegantes”, ou: “Não somos dos que entendem fazer
de Copacabana um lugar exclusivo dos ricos e dos estetas, o que defendemos é a
ordem e a beleza social das nossas praias. Sejamos progressistas, mas separando
o joio do trigo”).
O
conceito de praia democrática, então, é um mito?
Sim.
É um mito. Um exemplo é a chegada do metrô ao Arpoador, que provocou aquela chiadeira da população,
dizendo que ia virar “lugar de favelado”. E isso gerou, de fato, um
deslocamento: há uma população
segmentada na praia que é majoritariamente negra. O que no nosso país quer
dizer majoritariamente pobre, por nossas peculiaridades históricas. Não existe
a mistura. Se um grupo de meninos negros chega ao Posto 10 e começa a fazer uma
festa, no dia seguinte as pessoas vão se mudar para o Posto 11. É fato.
Depois dessas passagens, vocês conseguem entender que foi construído um ideário, um discurso, ou até mesmo, uma prática que
ainda tenta impedir que os jovens negros, pobres e favelados frequentem
determinados locais.
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Montagem feita pelo autor do blog. Qualquer semelhança não é mera coincidência. |
Antes lançarei algumas
informações sobre o que se conhece hoje como a “indústria dos Shoppings
Centers”.
“O segmento de shopping
centers ocupa hoje papel relevante no comércio de varejo no Brasil. Desde a
inauguração da primeira unidade (em 1966), o setor registra crescimento de
cerca de 100% a cada quinquênio. Tal expansão ocorre mesmo em períodos de
desaceleração da atividade econômica do país, o que indica que os shoppings
centers estão, em muitos casos, substituindo o comércio de rua.” (trecho
retirado da minha dissertação de mestrado).
Para a Associação
Brasileira de Shoppings Centers (ABRASCE): “A indústria de Shopping Centers do
Brasil fechou o ano de 2010 com um faturamento de R$ 87 bilhões, ante os R$ 74
bilhões de 2009, um aumento de 17,5% no período, segundo dados da Associação Brasileira
de Shopping Centers - Abrasce. No ano passado foram inaugurados 16
empreendimentos, que, com os dez já inaugurados em 2011, somam 418 centros de
compras desse tipo no Brasil.”.
Ao pensar no caso do
shopping de Vitória, vocês conseguem perceber onde estes garotos foram tentar
se proteger? Em que espaço, erroneamente pensado como público, eles foram
buscar proteção? Essa indústria certamente está nas mãos de uma seleta minoria
e nem preciso dizer qual a cor dessa minoria. Sendo assim, que paralelo podemos
estabelecer com estes dois fatos que ocorreram?
Jovens negros, pobres,
moradores de favelas e periferias, “mal vestidos” ou não vestidos como o
ambiente lhes impõem, com o sentimento de que são indesejados e,
consequentemente, sendo vistos como marginais e/ou criminosos. Quem dá o
direito a essa minoria e ao imaginário social de associar glamour, luxo e poder
aquisitivo com brancura (no sentido de qualidade de branco)? E se pensarmos o
contrário de tudo isso, quem tem o direito de associar com negrura (no sentido
de qualidade de negro)?
Cabe fazer uma ressalva
ao estilo de preconceito identificado no nosso país relembrando o grande
estudioso Oracy Nogueira, que bem fundamentado, nomeou o preconceito presente
no Brasil como “Preconceito de Marca”. Com essa denominação feita por ele, não
tenho dúvidas de que ela se encaixa perfeitamente com os fatos que presenciamos
ultimamente. Entenderam? Shopping, Praia, Glamour, Elite, Luxo, Branco, Negro,
Pobreza, Preconceito e Marca.
Para finalizar, existe
ou sempre existiu a tentativa de expurgar a pobreza de certos espaços visto
como de elite. Não é por acaso que ainda encontramos pessoas que nos dizem: e
você vai sair assim para ir ao shopping é? Com esta roupa surrada e este
chinelo? O nosso inconsciente está impregnado de informações que reforçam a
noção de que determinado local, ou, o shopping é um espaço de poder, de luxo e,
como tal, temos que nos fazer “apresentável”. Quando não nos fazemos
“apresentável” o que acontece? Direi a vocês: seguranças andando atrás da gente
pelo shopping, atendentes de lojas nos desprezando por nos julgar incapazes de
termos condições financeiras para comprar algum produto da sua loja, segurança
de supermercado duvidando se o carro no estacionamento é mesmo nosso, e tantas
outras situações que passaria o resto do dia aqui descrevendo.
O que é “apresentável”?
É parecer rico? É ser branco ou parecer branco? Ah! Já sei. É não parecer marginal? Mas e como é
parecer marginal? Ei! Mas mesmo que me “vista bem” ainda sou parado pela
polícia e recebo em muitas das vezes seus olhares interrogadores. Será que o
problema está no estereotipo ou na minha cor? Ou é uma questão de problema
macro estrutural?
Eu tenho minhas conclusões. E vocês?