Para ser bem sincero,
eu nunca fiquei tão feliz e empolgado com o Oscar como eu fiquei ao saber das
premiações de Lupita Nyong’o como melhor atriz coadjuvante e de melhor filme
para “12 anos de escravidão”. É óbvio que a minha alegria se deve à importância
e à representatividade de termos como ganhadores do prêmio: uma atriz negra,
nascida no México e criada no Quênia, um filme dirigido por um diretor negro, o
britânico Steve Mcqueen e, principalmente, pela audácia e grandiosidade do
filme em apresentar para o mundo a história de Solomon Northup, um homem negro,
livre, que foi vendido como escravo e submetido a 12 anos de escravidão. Ele
sentiu no corpo e na mente as agruras e violências de um sistema que marcou a
história e a vida de um povo africano e, concomitantemente, dos seus
descendentes, muitos negros da América e outros que foram espalhados pelo
mundo.
Peço licença e
desculpas, pois, nas reflexões que farei sobre o filme, lançarei mão de alguns
spoilers.
Não é novidade nenhuma
que este filme já nasceu um grande clássico e, especialmente, representa um
grande marco na história do cinema norte-americano e mundial, no que se refere
ao tratamento da questão do negro, da escravidão, do racismo, da segregação
e/ou do preconceito racial e etc.. Sem falar que é a primeira vez que um
diretor negro tem o filme que dirigiu escolhido como o melhor filme dentre os
concorrentes na entrega do Oscar. Esta também é uma grande vitória.
Na minha leitura do
filme, percebo um toque diferente, um toque de genialidade e sensibilidade que
o torna um divisor de águas. Já assistimos alguns filmes que remontaram o
passado escravista estadunidense, que construíram de diversas maneiras as
crueldades cometidas com os primeiros negros escravizados no continente
africano e trazidos para a América. Lembremos-nos do filme “Amistad” que
considero como estando no mesmo patamar de intensidade e força. Mas dessa vez,
não foi preciso reconstruir a viagem até o continente africano para mostrar o
que foi a escravidão. Nem partir de uma história em que os escravos já estavam subjugados aos montes nas senzalas e sendo violentados e assassinados todos os
dias.
O que aconteceu foi que
Steve Mcqueen encontrou a história de Solomon Northup. Um homem negro e livre
que vivia em Saratoga, no norte dos EUA. Neste período, o fim da escravidão já
tinha sido decretado. Sendo assim, além de um negro livre, Solomon era
violinista e, como vimos no filme, ajudava a sua esposa na complementação da
renda familiar ou, se preferirem, no sustento da família. Em uma das cenas, ao
entrarem num estabelecimento comercial, fica evidente que era a sua esposa, uma
mulher negra, que decidia o que comprava ou o quanto gastava. Ela pergunta
sobre o preço de um produto e Solomon se assusta com o preço e age como se não
fossem comprar, logo, sua esposa olha para o vendedor e diz que levará e pede
para que o mesmo o coloque junto com os outros produtos. Portanto, no meu
entender, já vemos no início do filme a figura central da mulher negra na
manutenção e sustento do lar e da família.
Solomon como um grande
violinista que era, recebe uma oferta de emprego de dois homens brancos, que o
enganam, sequestram e o vendem para o sul do país, onde a escravidão permanecia
firme. É a partir daí que o filme se torna um divisor. O excelente ator
Chiwetel Ejiofor (que interpreta Solomon Northup) foi fundamental. A
transformação no brio e no olhar que o personagem vai sofrendo com as
violências a que frequentemente é submetido, é de uma grandeza e vivacidade
descomunal. O que me marcou foi o olhar. Isso mesmo! A mudança que o seu olhar
foi sofrendo, deixando para trás um olhar altivo e autônomo para encarnar um
olhar de raiva, desespero e pavor.
Ao ser enganado pelos
possíveis contratantes, Solomon acordou no dia seguinte com grilhões nos pés,
mãos acorrentadas e sem entender o que se passava. Essa cena do seu despertar é
fantástica. Na noite do encontro com os contratantes via-se um homem livre, na
manhã seguinte um homem escravizado. Nessa cena, encontra-se uma das maiores
riquezas do filme. Esta cena foi realizada com tal grau de vivacidade e
realidade que foi suficiente para nos deixar angustiados e sem ar.
Pensemos: você nasce
livre e alguém, um homem branco, da noite para o dia, te diz e quer te fazer
entender que você é um escravo fugido. Naquele momento, sua liberdade acabava
de ser roubada ou capturada. O mix de raiva, indignação e não entendimento
sentidos por Solomon sobre a situação em que foi colocado torna-se um fato
compreensível na cena e na história. O pior vem em seguida...
Como fazer um negro
livre deixar de assumir e gritar com todas as suas forças que é livre e
compreender que agora é um escravo? É nessa cena que se instaura a violência
simbólica e real. Eles puxam as correntes de tal maneira que deixaram Solomon
numa posição curvada, com mãos e pés amarrados, sem poder de reação. Lendo a
cena do filme, posso dizer sem titubear que a forma que o colocaram para ser
espancado, foi uma maneira de “quebrar” a sua dignidade e sua altivez, fazê-lo
perceber que ali não existia um homem livre, mas sim, um negro, um “ser
inferior” que estaria abaixo dos seus superiores e donos.
Os acoites e as
pauladas desferidos nas costas de Solomon até se quebrarem, bem como as
injúrias e xingamentos, foram a fórmula para condicioná-lo à situação de
escravizado. O seu silêncio depois de estar com as costas ensanguentadas e com
a carne dilacerada, foi a resposta que ele pode dar para os seus algozes sobre
a pergunta que o faziam constantemente: você é um escravo?
Depois disso, Solomon
se tornaria um escravo. Mentalmente ainda houve resistência, mas o seu corpo
estava escravizado. Sua mente resistiu até onde conseguiu. A morte parecia só
uma questão de tempo. A subserviência, em muitos casos, era o passaporte para a
sobrevivência. Resignar-se, momentaneamente, se transformou em estratégia para
se manter vivo, enquanto não encontrava uma alternativa que o fizesse sair
daquela situação.
O filme “12 anos de
escravidão” para além destas questões que acabei de abordar, nos permitiu ver
outros temas que estavam inseridos na história do Solomon. E o filme retratou
muito bem esses temas.
Solomon Northup não foi
um negro escravizado que se rendeu facilmente à situação que foi submetido. Em
boa parte do filme ele tenta mostrar que tinha algo diferente dos demais e que
estava para além de sua cor. Mas isso não adiantava. Ele poderia ser letrado,
ter conhecimentos sobre o mundo, a política e a música que um fator lhe
condicionava ao escravismo, a cor da sua pele. Ele era negro igual aos outros e
tal condição o remetia à condição de escravo.
Ele passou por algumas
fazendas onde a relação com os senhores de escravos tinha uma escala de
variações entre: ruim, pior e muito pior. Primeiramente, vemos numa das cenas a
relação das negociações e valorações do negro enquanto mercadoria, um produto a
ser vendido. Depois de ter sido vendido, para um senhor religioso, cristão, a
vida do Solomon poderia ser mudada se o senhor dele realmente o escutasse e
quisesse ajudá-lo. Mas Solomon custou caro. E nesse quesito, religião e economia
não andam de mãos dadas quando a razão era a libertação de um negro que se
dizia livre e injustiçado.
Esse senhor religioso
que sempre realizava a leitura da bíblia para os seus escravos, teve que
negociar a venda de Solomon para outro senhor, pois, Solomon num ato de fúria e
desespero se defende das agressões de um branco que queria chicoteá-lo. Estaria
aí o primeiro erro de Solomon? Num acesso de raiva, partir para cima de um
branco e espancá-lo mesmo sabendo que isso poderia custar a sua vida? A resposta
do branco não demorou, penduraram-no numa árvore com uma corda no pescoço para
enforcá-lo, até que surgiu o capataz da fazenda em defesa da propriedade do
patrão. E disse para os algozes que o negro era uma propriedade do senhor e
eles não poderiam matá-lo, pois o senhor ficaria com prejuízo. Era uma cena
muito comum naquele período: ver negros enforcados e alçados como um troféu e
exemplo para os demais. A sensação de vê-lo pendurado, se esforçando para ficar
nas pontas dos pés para se manter vivo, enquanto o capataz e outros negros não
podiam retirá-lo de lá até a chegada do patrão, foi de chorar e machucar a
alma.
Já vivendo como escravo
do senhor Edwin Epps (Fassbender), um senhor brutal que trata seus escravos com
mãos de ferro, as coisas só pioram. Mas mesmo assim, ele ainda tentou fugir
algumas vezes, mas, na primeira quase foi enforcado novamente se não fosse uma
identificação que explicava que ele era um negro de determinada propriedade e
não um negro fujão. Acreditou num branco que se encontrava vivendo no mesmo
espaço que ele, trabalhando nos mesmos campos de algodão, confiou-lhe suas
economias para que este branco lhe enviasse uma carta que continha um pedido de
socorro. Mais uma vez sua vida ficou por um fio e teve de usar de destreza para
acabar com a desconfiança do senhor. A partir daí, como continuar confiando no
homem branco? Como Solomon sairia daquela situação estando longe de casa, da
família, dos amigos, de qualquer possibilidade de liberdade, se para onde
tentasse olhar havia pessoas querendo matar mais um negro enforcado, linchado
ou no tronco com inúmeros açoites?
Eis que surge um
momento que realmente é bem espinhoso e o Steve Mcqueen consegue abordá-lo de
uma forma que não me parece uma simples repetição de cenas que já vimos em
outros filmes, nos quais existe sempre um branco que é colocado como o
“salvador” de um negro escravizado. Creio que o diretor do “12 anos de
escravidão” vai além nessa questão e nos possibilita um tipo de situação no
filme que vai colocar explicitamente a aversão que muitos brancos do norte dos
Estados Unidos, ou até do sul, tinham do sistema escravista e suas
barbaridades. Esse era o caso do personagem interpretado por Brad Pitt que ao
externalizar sua concepção enfatiza que discorda da forma que o senhor Edwin
Epps (Fassbender) trata os negros em sua propriedade. Ele ainda afirma que
tinha negros trabalhando para ele, mas que os mesmos recebiam salários, o que
demonstra a concepção do personagem em reconhecer como direito dos negros
receber pelo trabalho que realizavam.
O que vejo numa das
últimas cenas são dois brancos discutindo as formas de como se deveria agir em
relação aos negros não só nas fazendas de algodão, mas em todo o país. A cena
se torna ainda mais emblemática e importante, quando visualizamos Solomon no
meio dos dois senhores brancos. Dando a entender que as questões referentes ao
negro dividia o país. Entre inúmeros debates e posições políticas, acadêmicas,
culturais e econômicas. Essa forma de expor a cena para mim foi genial.
E, finalizando, a minha
argumentação sobre este filme, temos que entender que naquele contexto, havia
sim uma necessidade de uma tomada de responsabilidade por partes dos brancos no
que se refere às condições às quais os negros foram submetidos. O Solomon tinha
amigos brancos no norte dos Estados Unidos que o viam como um sujeito de
direito, um homem negro livre e tão igual quanto eles. O abraço que Solomon dá
no advogado, não é um simples abraço de gratidão, mas um abraço de amigo para o
qual ele escreveu pedindo ajuda. Ele fala no decorrer do filme que poderia
provar sua liberdade e que só precisaria escrever para amigos ou familiares
para que os mesmos fossem ao seu encontro com os documentos. Temos que entender
que naquele período, os brancos no sul escravista jamais deixariam um negro por
mais letrado que fosse ter poder e autoridade nas suas propriedades.
Indubitavelmente era
necessária a conscientização por parte de determinadas parcelas da população
branca para que a justiça começasse a ser feita. Para que Solomon pudesse ter
seus direitos salvaguardados. Daí ver a entrada dos negros nos espaços de
poder, caberia a um momento mais à frente, com as políticas encampadas por
Lincoln e as Ações Afirmativas. Não tenho dúvidas disso.
Por fim, entendo que o
filme “12 anos de escravidão” se coloca na atualidade como um instrumento
político que pode potencializar mudanças de concepções e avanços no debate
atual sobre a figura do negro enquanto um sujeito de direitos e como
protagonista da sua própria história. Falo isso, no sentido de que não se deve
olhar a condição vivenciada por Solomon, com o olhar piedoso, mas com um olhar
de indignação pela situação a qual ele foi submetido. Indignação pela condição
que os negros foram subjugados a partir de uma ação imperialista (pensando no
período das colonizações na América e neo-colonizações do continente africano)
encabeçada por homens brancos, que devem sim, assumir sua responsabilidade
política neste processo.
Observo que está
inculcado na branquitude ou nos argumentos de muitos homens e mulheres brancos
o reconhecimento da “carência” e/ou das dificuldades enfrentadas pelo povo
negro, quando na verdade, o que deveria surgir seria o reconhecimento geral de
que houve um privilégio, que foi construído historicamente, a partir dos vários
séculos em que a população negra serviu de mão de obra escrava para o acúmulo
de riquezas de muitas famílias brancas.
Por isso, reitero que
as situações sentidas e vividas por Solomon, não só o fez perceber que não
bastava ele sair daquela situação e voltar para casa, (que sem sombra de
dúvidas era um fator muito importante para ele) mas que era preciso fazer algo
a mais, algo urgente para que se extinguisse aquele sistema perverso. Assim,
enquanto houvesse força vital dentro dele, ele a aplicaria na luta contra este
sistema e na ajuda de outros negros e negras submetidos a tais condições de
exploração e violência.
Com certeza, “12 anos
de escravidão” nos abre muitas possibilidades de discussões e problematizações
que precisam ser expostas para que entendamos que as reverberações vivenciadas
por Solomon ainda nos assolam. Enfim, encerro com o agradecimento do Steve
Mcqueen, pois, sinto que esta é uma das mensagens que o filme quer nos passar o
tempo todo.
“Quero dedicar a todos
que merecem não só sobreviver, mas viver. Esse é o grande legado de Solomon. E
a todos que sofreram com a escravidão e ainda sofrem hoje.” — disse McQueen.